quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

CHOQUE DE PRINCÍPIOS

Apesar da instabilidade ou da crise energética, e talvez por isso mesmo, parece que faz muita falta ao país uma coisa que no passado se chamava “vergonha na cara” mas que podemos, mais polidamente, chamar de “falta de princípios”. A sensação é a de que o pasto não tem dono. Em Brasília a burocracia oficial costuma se perguntar com leve ironia: quem vai defender a viúva? De certa forma é também uma confissão de que ninguém ali vai se mexer, seja porque lhes falta poder para isso, seja por cansaço ou descrença, depois de tantos e tantos anos assistindo às mesmas tramas. Fica fácil lembrar que tudo começou lá atrás, na descoberta, mas isso não explica nem ajuda muito.
Não se pode ignorar que tem havido avanços na direção dos direitos de cidadania, que indiretamente pressiona por melhores hábitos. Igualmente é preciso reconhecer que alguns instrumentos poderosos foram criados, nas raras ocasiões de elevação dos espíritos, como na Constituição de 88. O surgimento do Ministério Público talvez seja o mais importante desses instrumentos, mas sua prática tem sido obstaculizada por todos os meios e em alguns casos não deixam os caros procuradores de parecer “Quixotes tupiniquins”, lutando uma luta gloriosa mas desigual contra grandes e fortes poderes instalados em confortáveis e modernos edifícios, cercados de quantas bancas jurídicas for necessárias, beneficiados por uma legislação que não está feita ou mantida por acaso.
Assistimos diariamente pela mídia uma total confusão de fatos, interpretações, atitudes e comportamentos que parecem retratar um país surrealista, uma construção absurda de cenários inconsistentes, desconexos, contraditórios. A tradicional organização política de separação dos poderes se mostra defasada, violentada, incapaz de se impor como modelo histórico. Os abusos se impõem em diferentes esferas, como nos freqüentes e geralmente injustificados aumentos de rendimento que se auto-atribuem e estendem a funcionários, contratados por serviços e quem mais tiver a seu alcance. A sociedade civil mais escolarizada, já cansada de manifestações impotentes, de caras-pintadas, passeatas e abraços solidários, não demonstra mais capacidade de reação, mesmo quando as correntes internéticas parecem trazer novo alento à indignação pública, com seus grandes números. Mas o mundo virtual ainda não encontrou réplicas sólidas para superar os limites da própria virtualidade.
Então é possível assistir a filigranas de autonomia sindical para impedir a fiscalização do uso de recursos públicos, esquecidos de que não existe constitucionalmente nenhum setor do país livre de fiscalização, nem a empresa privada, o Congresso ou o Executivo.
Pode também uma autarquia faltar desastrosamente com a responsabilidade pela saúde pública, causando danos irreparáveis a boa parte da população, sem que haja indignação dos membros do poder político correspondente e sem que o próprio titular do posto tenha a grandeza de abdicar das funções, pelas quais ostensivamente pode demonstrar repetido enfado.
Onde, então, encontrar forças para mudar o estado de coisas, uma vez que os ventos internacionais estão empurrando a caravela verde-amarela a qualquer custo, sem tomar conhecimento do mar de sargaços em que navega, e o governo incorpora a ilusão de mérito próprio, quando uma formidável bolha de crédito invade todas as atividades comerciais, embutindo juros e criando um círculo fantasioso de progresso, de poder de compra, que se sabe poderá explodir adiante, se o cenário global decide encarar os fatos?
E como é difícil trilhar o caminho de defesa do consumidor!? Problemas repetidos ad nausea, que podiam ser objeto de defesa pública conjunta, pelo volume dos interesses, são deixados à livre e espontânea iniciativa dos interessados individuais, o que onera os meios e debilita as possibilidades de resultados positivos.
Não existe nenhum prestador de serviços, na atualidade, que não arraste uma significativa lista de protestos.

Não sei por onde começar, um amigo meu estava muito feliz contando como se sentia orgulhoso em Paris usando sua moeda forte contra o dólar ou o euro. Sentia-se finalmente um “igual”, podia desfrutar do melhor, tinha dinheiro para isso. E a gente acompanha, não apenas pelos jornais, mas pela conversa com amigos e vizinhos, todos se aprontando para viajar ou retornado de viagens encantadas. A classe média brasileira vai ao paraíso. O dólar, alguém pode afirmar qual o seu valor justo? Então como pode a mídia afirmar que aumentou e está dificultando o controle de preços, quando já esteve mais alto e mais baixo, quando se diz que flutua?
O povão do “Bolsa-família” também não tem do que se queixar, teve até aumento espontâneo do governo e não foi pequena a valorização dos chefes de família como centro financeiro com capacidade de compra no mundo da pobreza.
Enfim, com a classe média e o povão em estado de graça, quem vai ligar para o destino de nossa nação? A quem importava que se pudesse tomar dinheiro emprestado no exterior, aplicar por aqui, levar de volta o suficiente para pagar o empréstimo e ainda lucrar? A quem importa se nossas empresas industriais, pressionadas pelos custos comparativos internacionais, precisam apelar para todo tipo de jeitinho? E se ficam expostas e tentadas a vender-se ao capital externo, do que resultará no futuro uma complicação a mais na remessa de lucros e divisas e no balanço de pagamentos? Afinal, é fácil comprar empresas brasileiras em dificuldade, com o próprio lucro obtido nas aplicações financeiras, podem sair muito baratas ou mesmo a preço zero.
A quem importa, então, se a classe média vai gastar no exterior em lugar de nossas rotas turísticas internas? Afinal, o próprio presidente não dá o exemplo? Não é ele quem viaja pelo mundo com o prazer de um adolescente?
Se tudo está tão bem, por que será que me sinto tão ruim? Por que sinto que alguma coisa está cheirando muito mal?
Tecnicamente pode ser que não estamos numa guerra civil nas grandes cidades, sobretudo no Rio de Janeiro, então por que sinto que estou dentro de um inferno e as estatísticas teimam em demonstrar que realmente a morte ronda em cada esquina?
Não entendo por que devo sentir-me tão ameaçado, se os brasileiros estão em toda parte, em todo o mundo, se nossas mulheres fazem sucesso em todas as grandes cidades européias, e aqui mesmo no Nordeste são disputadas antes mesmo de ganhar estatura.
Tudo está dando certo e nossos políticos voltaram a fazer sua festa eleitoral, largos sorrisos e nem precisaram se importar com fichas sujas, se temos no país boas lavanderias.
Sou do tempo em que havia princípios, valores universais, mas tenho de reconhecer que tudo hoje é relativo. Havia aprendido com os franceses que no máximo se podia negar sempre, mesmo quando o cônjuge era apanhado na cama com um desconhecido, era a anedota exemplar. Mas agora negar evidências é rotina, acabaram com a piada. Max Nunes, o maior dos humoristas, já reclamou que estava perdendo o emprego, a realidade anda mais engraçada que seus esquetes.
Minha experiência pessoal com os prestadores de serviço – telefonias, bancos, serviços de infra-estrutura, etc. – tem negado sistematicamente a imagem que buscam as empresas de compromisso com o consumidor, o cliente, a cidadania. Enquanto a publicidade apela para esse lado, a realidade dos Procons e Pequenas Causas aponta para outro, muito diferente. Os telemarketings esgotam nossa paciência, as promoções são propositadamente confusas e não dizem tudo, as contas sempre trazem um dado inesperado, os contratos unilaterais de compra e venda ou de prestação de serviços, além de ilegíveis são grosseiramente abusivos.
Recentemente a velha inflação levantou a cabeça, mas basta ir a um supermercado para experimentar as filas e os carrinhos abarrotados. Como entender isso?
Então, voltando ao amigo entusiasta com nossa moeda, eu me pergunto: se a moeda é forte, por que tem de ser escorada com taxas de juro tão elevadas? Se a inflação decorre claramente do formidável estímulo ao consumo, alimentado sobretudo pela farra dos crediários, por que só a taxa de juros é escolhida para contra-atacar? Mas como, se em qualquer estabelecimento comercial lhe oferecem e quase lhe obrigam a dividir em tantas vezes?! Surrealismo, ou apenas não estamos entendendo nada?

Rio 23 de janeiro de 2009-01-22

J. C. Alexim

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