quinta-feira, 12 de junho de 2008

O “DAY AFTER” DA SOCIEDADE TERCIÁRIA

Um amigo de afirmou outro dia que se sentia no contrapé da história. Contrapé, como se sabe, é aquele estado em que o goleiro se atira na direção da bola mas esta se desvia no caminho e muda de direção, deixando-o no vazio. É também como na famosa e premiada fotografia do Sr. Jânio Quadros, em que seus pés se entrecruzam, como se perdidos de rumo. Diz-se igualmente que teria sucedido com os dinossauros, quando estes desapareceram. Tal era a gravidade da situação do meu amigo. Havia percorrido um longo trajeto profissional, assumindo responsabilidades cumulativas em algumas poucas empresas, entre privadas e públicas, mais destas que daquelas, ocupando cargos qualificados e preparando-se para uma justa retirada no fim da estrada.
Tendo se preparado para alcançar e manter bons empregos, seguros e bem remunerados, só trocando algum por outro mais interessante, e se possível acumulando seus benefícios, chegando finalmente à gratificante aposentadoria, de repente se viu estranho diante de um cenário que não estava previsto no dia anterior. Despertou em nova e estonteante realidade. Sua vida de assalariado rapidamente perdeu certeza. Os vizinhos, pessoas conhecidas e alguns amigos, eram todos “microempresários”, “homens/mulheres de negócios”, “empreendedores”, “intermediários”, “informais”, qualquer coisa menos empregados. E salário já não parecia remunerar melhor que outras formas de trabalho.
Meu amigo me faz pensar. O emprego tradicional encurtou, uma nova lógica de organização do trabalho ensaia entrar em cena. Por enquanto, sem as garantias necessárias, e então aparenta visita inesperada. Mas não é convidada de pedra. Tudo está mudando e, antes que seja nunca, será preciso que se estabeleçam novos princípios gerais, a partir dos quais se possa ir reordenando todas as coisas no universo laboral. Porque nenhuma sociedade pode conviver com o caos mais do que algumas poucas horas.
Trabalho flexível, jornada reduzida, trabalhos temporários, subcontratação, cooperativas de trabalho, tudo é possível desde que se acorde uma nova cultura nas relações de trabalho, assegurando respeito mútuo e valores sociais integrativos.
Na verdade, as perdas no plano do emprego nominal poderiam ser recuparedas no processo de estabilidade horizontal. Ou seja, que se configure um contexto econômico associado a garantias sociais de modo a viabilizar que um trabalhador possa percorrer várias modalidades de trabalho e de ócio forçado, sem comprometer a continuidade da vida familiar. Porque os benefícios e salários sociais estariam vinculados a planos coletivos globais e não mais a vínculos individuais de emprego. Uma sociedade do trabalho onde as elites assumem compromisso com o futuro do país e o Estado um papel mais ativo na criação de terreno fértil para relações mais equilibradas e sustentadas na justiça social.
Mas não é este o cenário natural que se aproxima ( e que espanta meu amigo). O que se agrava, se não se adota correção de rumo, é a incidência da economia fictícia, que não depende de produtores ou consumidores, que festeja o negócio duvidoso, o risco delituoso e o rendimento fácil, e não mede conseqüências sociais.
O que meu amigo vê é um mundo na fronteira de dois mundos: o do “day after”, ou a aurora de uma nova sociedade terciária. Quem sabe não se pode construir uma sociedade mais justa e com (um novo tipo de) trabalho para todos!
Meu amigo, enquanto isto, tem razão de estar assustado e sentir-se jurássico.



Publicado no JB em 24/07/97
UMA NOVA SOCIEDADE DO TRABALHO

As notícias recentes sobre o agravamento do desemprego, notoriamente na região paulista, colocam o tema na ordem do dia e criam a motivação e as condições gerais para que o país comece efetivamente a considerar uma política nacional de emprego.
A sociedade ocidental esteve historicamente organizada em torno de uma ética do trabalho. Ser desempregado ,dentro dessa ótica, nunca foi nada fácil, rompe-se a auto-estima, sofre-se discriminação e perdem-se valores fundamentais para a coesão e a solidariedade sociais. Ainda não foi encontrado melhor instrumento para o controle social que a disciplina do trabalho. O desemprego é também um enorme desperdício para o país, na medida em que o trabalho é necessariamente um fator de produção.
Na verdade, o emprego é uma solução para muitos problemas, individuais, sociais e nacionais. O emprego estável possibilita realizar inversões em recursos humanos, programar qualificação e eventualmente reconversão do trabalhador e, em contrapartida, dispor do seu compromisso pessoal em relação aos destinos da empresa. Tudo como requer a nova organização do trabalho e o novo modo de produção: trabalhadores envolvidos com os resultados da empresa, capazes de tomar decisões, criar novas soluções para problemas emergentes, trabalhar em equipe, torcer pela empresa e compartilhar riscos e benefícios.
Essa estratégia de organização social faz empresários e trabalhadores co-responsáveis, juntamente com o governo, pela viabilização de um projeto nacional. Possibilita afinal flexibilizar as relações do trabalho, como medida apropriada para ajustar o mecanismo produtivo aos novos tempos, dentro de um contexto de maior transparência e confiança. Começando por melhorar e ampliar as relações dentro da empresa, um pouco ao modelo japonês, de quem se admiram tanto outros traços e se esquece justamente o vínculo essencial do trabalhador com a empresa.
Entretanto não se trata de mera generosidade da empresa e boa vontade do trabalhador. O conjunto dos resultados, tendo em conta os ganhos a médio e longo prazos, tem de ser atraente e atender a interesses diferenciados dos atores sociais e da sociedade como um todo. As empresas precisam assegurar produtividade, competitividade, ou seja, sustentabilidade. Os trabalhadores aspiram a mais estabilidade, melhores salários, condições de trabalho e participação nos benefícios. O governo supõe crescimento e desenvolvimento econômico, com justiça social.
Como viabilizar essa equação aparentemente contraditória? A chave estaria na articulação de um pacto social que estabeleça uma nova cultura do trabalho e administre ganhos de produtividade. Existe no sistema produtivo brasileiro um enorme território de perdas e desperdícios. O corte de pessoal é, nesse contexto, uma saída demasiado simplista, em termos administrativos e demasiado apressada em termos gerenciais. Com a eliminação de ineficiências, muito possivelmente a permanência do trabalhador pode ser não apenas conveniente, mas também necessária. Existe um amplo espaço –ou gordura—no processo produtivo que pode e deve ser esgotado antes que a dispensa de trabalhadores se mostre inevitável ou justificável. Ganhos de produtividade por melhor desempenho global da empresa podem representar um caminho mais justo de combate ao desemprego. Nesse sentido a formação profissional é imprescindível.
Não existe uma medida que sozinha seja capaz de resolver a questão do emprego. Ao contrário, o tema tem de ser assumido no conjunto da economia e da sociedade. A luta tem de ser ganha em cada oportunidade, em todas as instâncias do poder e da estrutura social. Os encargos sociais no Brasil são elevados, comparativamente a outros países concorrentes, mas o custo global do trabalho é baixo, e muitos componentes inscritos como encargos, se eliminados, teriam de ser fatalmente recuperados nos salários. E como encargos não geram encargos.
O custo-país pode ser um dado estratégico se revisado e assumido também por governo e trabalhadores. Se a população dispõe de boa saúde e tem acesso a boas escolas e bom atendimento hospitalar, se a alimentação básica permanece em níveis acessíveis, as condições de trabalho e de salários podem ser melhor negociadas.
O setor informal já não é um setor residual. Na verdade, representa uma parcela significativa do processo produtivo e tem de receber tratamento apropriado, não do tipo restaurador, não mais como enfermidade do sistema, mas como a pré-configuração de um novo modo de produção.
Acordos, discussões, acordos, há um complicado caminho pela frente, mas é necessário enfrentá-lo se a meta é construir uma nova sociedade do trabalho.

Publicado no JB em 4.10.1996
A EXTRAPOLAÇÃO DA RIQUEZA

Assistimos nos tempos de hoje a uma formidável concentração de poder e riqueza no mundo. Os sistemas que pregavam ideais de igualdade e fraternidade passam por um período de completa privação, sem fôlego para exercitar o mínimo esforço. Por esse lado, a sociedade humana mergulha nas trevas da modernidade. E justamente quando o desenvolvimento tecnológico alcança dimensões fantásticas e afasta os temores históricos sobre os limites de recursos naturais para a sobrevivência da humanidade. Na verdade os limites são impostos por barreiras política e socialmente estabelecidas. A tecnologia faz a sua parte, a humanidade falha no dever de casa. Basta uma viagem rápida à Europa ou aos Estados Unidos, para sentir o volume acumulado de riqueza. Salta aos olhos, não requer instrumentos refinados de mensuração. Há uma riqueza fabulosa concentrada nesses países ou regiões. Paralelamente, dentro dos países a situação se reproduz em desigualdade. Em toda parte aumenta a distância entre os que concentram a riqueza e os que alimentam a grande corrente dos excluídos. São mundos dentro de mundos. A globalização é seletiva e embora estimule alguma transitividade não diminui o impacto da separação de mundos, ou se preferir, de classes sociais. A estratificação social torna as exclusões relativas e inibe sentimentos de solidariedade. Na nova faixa de pobreza as pessoas trabalham e ganham salários ou rendimentos do trabalho ou de pequenos negócios, que mal respondem pela necessidade de manter a vida em seguimento, não permitem alcançar o que antigamente era identificado como “uma existência tranqüila.” Não importa quanto ganhem, o sistema está montado para que no seu nível de vida tenham de gastar compulsoriamente com a casa, os estudos, os seguros, os consumos supérfluos, os créditos, as provisões e o funeral. Não deve sobrar nada no acerto de contas, e os métodos evasivos de aferição dos índices de custo de vida estão montados para assegurar esse propósito. Ou seja, a classe média atua como afluente que deve alimentar o grande rio do sistema econômico nacional e/ou internacional, o grande estuário do sistema capitalista em vigor.
É certo que a economia de escala produziu uma revolução no consumo de massas, todos têm algum acesso a telefone (eventualmente público) transporte, eletrodomésticos, água, etc. As atrações do circo aumentaram muito desde os romanos e os gastos familiares vão no mesmo sentido. Mas a acumulação, que está na base do modelo capitalista, se tornou coisa exclusiva do Estado ou do próprio mundo das finanças, distante do comum dos mortais. Abaixo dos novos pobres ou relativamente pobres, que sentem que têm ainda algo a defender, vêm os “subexistentes”, parias da nova sociedade mundial, que já nada têm a perder e se tornaram praticamente “invisíveis”. Essa forma de controle social sufocante só poderia dar no incentivo à existência marginal da produção e da vida. A massa de marginalidade cresce ameaçadoramente na sociedade moderna e ninguém pode prever até onde poderá chegar, a menos que se recorra a pura ficção, que deve cada vez mais à realidade, como queria Oscar Wilde. Não existem sinais observáveis, em todo o planeta, de que esse processo acumulativo e concentrador mostre cansaço ou acene para uma conciliação reparadora. A globalização é assumida como “fetiche” e mais justifica que explica a fraqueza dos países emergentes diante dos termos perversos da relação de trocas internacionais. Na verdade, a falta de sinais positivos nesse âmbito não pode ser desculpa inibitória para as iniciativas localizadas. A eliminação de índices elevados de inflação , nesses países, representou um avanço na estratégia da igualdade, mas se revelou também insuficiente. Muitos países perderam, com o processo de privatização, uma expressiva oportunidade de interferir na distribuição da riqueza. Tratando-se da alienação de bens públicos, dentro de uma mobilização de recursos financeiros de grande porte, acumulando um enorme poder de direcionamento político, teria sido o caso de integrá-la em uma decidida estratégia de reengenharia social.
Da mesma forma, precisam ser corrigidas as contaminadas relações entre o público e o privado, que têm gerado perdas unilaterais. A empresa econômica, por exemplo, opera no domínio público, utilizando-se de um espaço que foi preparado com recursos de todos os cidadãos, coletivamente, através do Estado. Deve, então, atender a critérios e regras que coloquem o interesse público em pauta, assumindo definitivamente sua parcela de responsabilidade social, não apenas como marketing, mas como compromisso político.
A administração pública, nos países em desenvolvimento, tem de ser encarada como tarefa relevante e todos os meios de assegurar transparência nos negócios públicos precisam ser implantados e desenvolvidos.
O grave é que o sistema político, estratégico nesse processo de discussão, quando o objetivo é implantar democracia em todas as suas necessárias dimensões (política, econômica e social) reflete no momento uma correlação de forças profundamente negativa. E dele se depende para promover e consolidar as transformações.


JB 22/12/00
O FIM DO EMPREGO

Não custa repetir que a mundialização da economia e a revolução tecnológica são responsáveis diretas pelas grande transformação que se dá no mundo do trabalho. Isso para ficar no assunto que nos interessa, porque na verdade os efeitos se traduzem em todas as dimensões da vida humana.
A sociedade tem estado, nos últimos 50 anos, pautada por uma forma de estruturação que tem na ética do trabalho seus fundamentos essenciais. O trabalho tem sido um componente estratégico da organização social. Todos os elementos dessa ordenação vieram de um modo de produção que valoriza três ingredientes: matérias-primas abundantes, mão-de-obra barata e produção em escala.
Como sabemos, essas vantagens estão perdendo alento com a nova lógica de produção. Na verdade, há uma completa subversão de um pacto social do trabalho que vinha administrando as relações sociais até a atualidade.
A longo termo o trabalho continua sendo um componente imprescindível da equação social, mas o seu efeito foi mediatizado pela intensa incorporação tecnológica e pelo grande espaço alcançado pelas intermediações econômicas e financeiras.
Essa tendência é própria do modelo de produção vigente que tem no declínio do fator trabalho um resultado inerente à sua lógica principal. Mas a velha fórmula de que a economia precisa de produtores e de consumidores persiste e esse trabalhador excluído do processo produtivo hoje, terá de ser recuperado em algum ponto do sistema econômico, mais adiante, como consumidor. A globalização tem permitido uma transferência no tempo e uma transposição no espaço, através da ruptura das fronteiras nacionais. Isto tem dado aos produtores a possibilidade de prescindir do consumidor imediato, mas esse círculo terá de se fechar em algum momento, quando os outros produtores de todos os países também exigirem consumidores extra-territoriais. Essa equação não tem prazo, mas terá de ser concluída, por sorte para a humanidade.
A OIT defende a possibilidade do pleno emprego, tomando esse conceito de uma maneira mais ampla que inclui o auto-emprego e uma taxa razoável de disponibilidade ou mobilidade. Medida a chance de emprego pela quantidade de horas trabalhadas no mundo, a equação se apresenta positiva, ou seja, o trabalho continua crescendo. As dificuldades se agravam com a modificação ocorrida na oferta de mão-de-obra, pela assunção do âmbito familiar como unidade produtiva de referência. De fato, o critério de atendimento a necessidades mínimas foi reavaliado não mais em função de um chefe de família responsável pelo orçamento doméstico, mas de toda uma família trabalhando. Embora inquestionável, isso contribuiu para precarizar os salários, trazendo dificuldades adicionais à questão do emprego.
Enfim, se a massa de trabalho continua crescendo, dificilmente se pode imaginar o fim do emprego. O que está obviamente entendido é que o emprego muda drasticamente de perfil. Resta então imaginar como irá configurar-se o novo paradigma nas relações do trabalho. O cenário que se apresenta, atualmente, é o de uma realidade em transformação e não permite uma fotografia de contornos definidos. O que muda significativamente no emprego, com o novo modelo de produção flexível, é o papel da produtividade. Vista com talvez justa desconfiança pelo sindicalismo no passado, a produtividade passa a ser o elemento essencial da nova estratégia. Se antes, no modo de produção com mercado cativo os aumentos salariais e outros benefícios conquistados pelo trabalhador podiam ser transferidos folgadamente aos preços, em um mercado ativo essa compensação encontra mais dificuldade, em função da competitividade a que supostamente as empresas passam a ter no novo modelo econômico.
Setores hoje considerados marginais ou informais não podem mais ser tomados como resíduos do sistema. Ao contrário, estão se tornando a nova onda e portanto há necessidade de delinear-se esse novo cenário para a adoção de medidas de política ativa que possam promover uma justa distribuição dos papéis e dos benefícios na nova sociedade.
Existe, por outro lado, um crescimento do chamado terceiro setor, onde se movimentam atividades não remuneradas e de forte satisfação pessoal. As tendências de envelhecimento da pirâmide social obrigam a considerar a necessidade de um montante em torno de 10% da população ativa passe a uma etapa de desaceleração do trabalho, que não significa necessariamente a parada total. O trabalho poderia ir diminuindo de horas e os salários compartidos entre sistemas de seguridade e empresas.
Está claro que as forças econômicas por si mesmas não gerarão um novo modelo com justiça social. O puro crescimento da economia não é condição suficiente para distribuir a riqueza. É papel do Estado administrar o interesse público, intervindo nesse processo de modo a assegurar uma melhor distribuição de renda, necessária para instalar o equilíbrio social.
Em resumo, o destino do emprego depende de uma ação do Estado, mas está sobretudo nas mãos da própria sociedade, desde que as elites não se isolem do interesse público e participem de esforços integrados para alcançar um novo pacto social no campo do trabalho.

Publicado no JB em 14/02/97

segunda-feira, 19 de maio de 2008

NOÇÕES DO RISCO A noção de risco precisa ser repensada. Historicamente, o risco faz parte da livre iniciativa do capital e corresponde à contrapartida do lucro. Boa parte da mais-valia se justificaria no sistema capitalista pela necessidade de remunerar o risco. Ocorre que na lei da selva, própria das benesses outorgadas ao capital como dono da casa, o empreendedor busca por todos os meios reduzir ou mesmo anular os riscos de seu investimento. Há pouco se pôde ver, na prática, o resultado de uma dessas benesses obtida no processo de privatização pelas grandes empresas do setor elétrico. As dificuldades sofridas com as perdas de capacidade energética e em conseqüência com a redução do consumo, foram abonadas pelo governo e portanto pela sociedade.Aquela fórmula já repetitiva e cansada, mas não menos exemplar de privatizar os lucros e socializar os prejuízos. Agora se fala de introduzir o risco na vida laboral. “O risco vai se tornar uma necessidade diária enfrentada pelas massas, imposto em função da instabilidade das organizações flexíveis” (Sennett op.cit. p.94) Como se irá remunerar o risco do trabalhador? Se por um lado a rotina de trabalho era apontada como indutora de docilidade e resignação, no condenado modelo fordista, por outro lado ela estava associada a certa estabilidade de vida para o trabalhador. Aspirava-se, e a educação trabalhava com essa perspectiva, por uma carreira, mesmo horizontal, que cobriria grande parte da vida produtiva dos indivíduos. Alguns pensadores até consideram que a rotina não é de todo uma coisa ruim. “Decompor o trabalho, mas compor uma vida”. (Sennett op.cit. p.49) O trabalho repetido poderia ser até mesmo criativo, é quando se domina uma tarefa que se coloca a possibilidade de a melhorar. Giddens alerta para a irracionalidade de uma vida sem condicionamentos e acrescenta que os hábitos que se domina são os que se oferecem para testar alternativas. (Sennett op.cit. p.50). Alguns autores destacam o fim das ilusões sobre a possibilidade de mudanças revolucionárias. A revolução teria sido trocada pelos benefícios de uma participação mais substantiva no espaço público e na distribuição da riqueza proporcionada pela - esta, sim - revolução tecnológica. A ascensão da social-democracia seria a expressão mais autêntica dessa nova postura dos ex-insurgentes. Citando Bernstein, Méda registra que a social-democracia, assumindo-se como uma ideologia não-marxista, adota método de ação que não pretende mais a reversão das instituições políticas e sociais do capitalismo, mas ao contrário, se propõe “uma longa marcha através das instituições”. (Méda op.cit. p.131) A autora completa mostrando alguns equívocos dessa posição, que teriam sido igualmente apontados por Marx: a) o reconhecimento das relações de trabalho como pauta para uma liberação futura do trabalho; b) crer poder tratar dos problemas de repartição da riqueza sem indagar sobre as respectivas posições no processo produtivo; A sociedade constrói um terreno frutífero para a iniciativa privada, que precisa também de um trabalhador “livre”, em condições jurídicas e em regime de necessidade econômica, no ponto para demandar um lugar no mercado de trabalho. A empresa se coloca como um momento de conciliação desse jogo. Mas a empresa está se tornando “flexível”, leve e ligeira, em trânsito. A empresa antiga se pretendia uma comunidade de trabalho, a empresa flexível se define como “um arquipélago de atividades relacionadas”. (Sennett op. Cit. p.22) Que espaço poderá o novo trabalhador ocupar nesse novo e desbordante cenário?
CRISE SISTÊMICA

Os sucessivos governos – federais, estaduais e municipais – somando ineficiências e despreparo, vêm perdendo oportunidades, realizando trabalhos provisórios, mal concluídos ou inconclusos, acumulando ônus, perdas e dívidas, cujo custo, em última instância, é assumido compulsoriamente pela sociedade brasileira. Déficits que obrigam os novos governos sem criatividade administrativa e sem força política a valer-se de aumentos e duplicação de impostos e taxas de toda ordem. Essa dívida tem-se traduzido em estradas mal cuidadas, professores mal pagos, saúde pública enferma, capacidade de poupança do país arruinada e classes médias sufocadas. Os economistas neoliberais de plantão no governo fazem simplesmente a recorrente receita dos organismos financeiros internacionais e mantêm o compromisso de não mudar nada para que o sistema financeiro continue acumulando lucros descomunais. Os economistas petistas, preocupados com a biografia, fazem crítica acanhada, certos de que não serão levados a sério, e logo se acomodam nos gordos empregos. Ninguém estranha um desemprego que varia em torno de 13%.
Enquanto isso as classes médias, sem expectativas e horizontes, saem para os pequenos delitos, as espertezas marotas e as inadimplências anunciadas, formando no conjunto da obra uma corrente viciosa de transgressões da ética e dos preceitos do bem-estar-social.
E as chamadas classes populares estão satisfeitas com os subsídios sociais, o crédito facilitado através de inúmeras fórmulas e os preços contidos da cesta básica, mas continuam com suas estratégias de sobrevivência, já históricas, que se ajustam às condições impostas pela informalidade e o convívio intermitente com o estado policial.
As cadeias e os centros médicos estão lotados e o sistema de previdência onerado. Não são problemas isolados, o país vive uma inequívoca crise sistêmica, em que as perdas e deficiências, de um lado, vão pesando no desempenho, em outros lados. Comecemos por saúde e educação. Um povo bem educado, desde o pré-natal, passando pelo jardim de infância e educação de base, vai saber cuidar melhor da saúde e preservar o ambiente, na certeza de que se estará beneficiando em saúde e prazeres, vai respirar melhor, vai ter menos contágios etc. Tendo melhor saúde vai render mais na escola, vai aprender mais fácil e não vai faltar às aulas por resfriados e malária. Vai custar menos também para o estado e para a família, porque não vai gastar tanto em remédios e em reforços escolares e repetências.
Se o estado economiza em gastos marginais, vai poder melhorar a qualidade da escola, dos equipamentos e salários. Os cidadãos, mais educados e menos enfermos, vão ter melhor desempenho no trabalho e vão elevar a produtividade das empresas, o que por sua vez vai possibilitar aumentos salariais e investimentos em ampliação, de novo puxando o emprego. Novos empregos geram mais capacidade de consumo, mais estímulos à produção, maior arrecadação de impostos sem necessariamente sua elevação. Menos enfermos e mais saúde, as pessoas desoneram os serviços, e os planos de saúde não terão argumentos para continuar elevando preços. Cidadãos felizes se mantêm em atividade e não se tornam inativos precipitadamente, trazendo mais alívio aos sistemas previdenciários. Se as pessoas são mais educadas, podem se informar melhor e compreender melhor a complexidade da vida moderna, e votarão melhor, e cobrarão dos seus representantes o respeito às promessas. Se a sociedade enxerga melhor vai exigir transparência dos serviços e dos investimentos, e haverá maior produtividade do gasto público. Com mais recursos e legitimidade, o serviço público poderá oferecer melhor educação e saúde. E voltamos ao começo. Mas não adianta fazer remendos ou atacar uma ilha no oceano. Os administradores da coisa pública não têm mostrado, historicamente, vocação para estadistas, pessoas que olham o interesse da sociedade e projetam obras e serviços que passam dos estreitos limites de seus mandatos. Nunca se pôde explicar como surgem gerações virtuosas de dirigentes da coisa pública, parecem ser produtos do acaso, o que não nos autoriza esperar que nosso país será contemplado, aquela estória de Deus ser brasileiro. Um país virtuoso teria maiores consensos e transparência o que significa prestar contas, explicar. E aí começam as dificuldades, e voltamos ao começo, sempre voltamos ao começo e sempre apostamos no futuro desligando do presente. Um dia teremos de começar de fato, e não importa por onde, desde que o envolvimento seja como a crise, sistêmico. Os sistemas são criações intelectuais elaborados para facilitar a compreensão e explicação da realidade. Mas seus efeitos existem independentemente de nossa capacidade de apropriá-los com nossos modelos.


João Carlos Alexim
Sociólogo

(maio de 2003) (revisão: setembro 2006) (revisão: junho 2007) (última revisão: abril 2008)