Lamento ter de insistir no tema,
mas considero obrigatório, até mesmo pela falta de argumentos contrários dos
que são indiciados na narrativa. A Rede Globo apontou no que viu e criou o que
não viu. A torcida do Flamengo, ao contrário de todas as demais, no país e
talvez no mundo, se transformou numa espécie de torcida organizada toda ela.
Nos clubes você tem um grupo menor seletivo que trabalha mais diretamente as
demonstrações de fidelidade.
Essa torcida organizada é reconhecida como fanática, que não se importa
com o adversário, tomado como inimigo, ela quer é estar junto de sua equipe
para o que der e vier, levar sua dedicação. Geralmente a administração do clube
financia ou facilita a circulação dessa torcida. No mundo inteiro os exemplos
de comportamento desses grupos não são nada exemplares. Tirando, pelo menos por
enquanto esse aspecto de violência, no demais a torcida do Flamengo se compota
como uma torcida organizada toda ela.
Nenhum clube, talvez em todo o mundo, tem sua camisa esportiva usada
amplamente do cotidiano, no trabalho, na festa, e até nos templos. Nenhuma
torcida geral vai ao estádio sem saber, muito frequentemente, quem é o
adversário. Não se importam se uma vitória é obtida irregularmente e há os que
até festejam, por exemplo, um gol em impedimento ou com a mão. Ela não discute
esportivamente o resultado de um jogo, uma disputa, ela quer a derrota do
inimigo. Quer sair festejando do estádio. Os três clubes grandes do Rio estão no buraco,
não pode ser coincidência, enquanto sobra dinheiro nos cofres do Flamengo e ele
confortavelmente eleva os preços do mercado, piorando a situação dos demais. E
o Flamengo, assim como tratou comercialmente o desastre com sua garotada no
ninho do urubu, sem carinho, sem sentimento ostensivo, também não se importa
com a situação dos clubes irmãos. Não há a mínima solidariedade. E não lhe
importa se esses clubes vão à lona, se são rebaixados, porque como dissemos
antes, a torcida não se importa com grandes espetáculos, se conforma com
vitórias falsamente engrandecidas pela mídia que o próprio Flamengo cada vez
mais domina. Assim como já ocupa o conselho de arbitragem onde o encarregado
vem das hostes de seu parceiro e seguramente será pelo menos simpático com os
times da casa, já vem demonstrando como suas armas já alcançam instâncias
regionais. Com o dinheiro que tem pode praticar o na Europa começam a questionar
(por aqui vai demorar muito ainda), o doping financeiro. O Flamengo, com o
dinheiro que tem nas mãos é um risco para o fair-play esportivo no país.
Uma parte da mídia tem ponderado,
comedidamente, sobre as questões que trato de encaminhar há bastante tempo. Um dos temas é o problema das famílias que
perdem seus filhos e rompem tradições clubistas de gerações. Famílias dos rivais ensinam seus filhos
a resistir à febre rubro-negra
Tatiana Furtado 01/12/2019
– O Globo
Pais criam estratégias para não perderem os pequenos na boa fase do
Flamengo; zoações na escola podem influenciar.
Na casa do músico e professor de história Carlos Eduardo Valdez, 34
anos, não se canta “Parabéns pra você”. O hino do Vasco é que dá o tom das
comemorações. É assim que ele espera passar o amor ao clube, que já perdura na
família há gerações, para o filho Benício de 4 anos.
O momento do Flamengo e as “más influências” na escola e entre parentes
próximos geram certo temor de perder o pequeno torcedor para o rival. Mas pais
e mães têm suas estratégias para impedir que a atual avalanche rubro-negra
interfira nesse vínculo.
O pai utiliza algumas táticas. Ele faz a sua parte vestindo o menino dos
pés à cabeça nas cores do clube de coração. Ou associando os gols vascaínos a
momentos divertidos. Mas diz ter
argumentos caso precise de uma leve chantagem emocional:
— Damos ao filho uma educação social e procuro utilizar a história do
clube, a luta contra o preconceito, de ter preferido ser rebaixado a tirar os
negros do time.
Família é decisiva
Um dia um garoto de 10 anos,
deixou escapar que torce pelo rubro-negro, quando o Fluminense não joga e só
tem partida do Flamengo na TV. O pai, que faz de tudo para os três filhos
não escaparem do destino tricolor, se assustou. Diante da surpresa do pai, o
filho tentou amenizar, afirmando que é tricolor de coração e nada vai mudar. O pai
explica que o torcedor de verdade se mostra quando o clube está em baixa —
conta o gestor de novos negócios, que faz um escudo contra as investidas de um
seu irmão rubro-negro.
Os títulos do Flamengo também ecoam na hora do recreio nas escolas. Os
torcedores dos rivais sabem que ouvirão piadas sobre a situação dos seus times
no momento em que o sinal tocar. E isso, claro, pode fazer as crianças
duvidarem das escolhas familiares.
“Felipe cresceu em Santa Catarina, Daniel na Bahia, ambos bem
longe dos estádios onde as partidas de seus clubes do coração jogam. Aprenderam
a amar o Flamengo e o São Paulo assistindo às partidas desses times pela
televisão.” (Recorte de texto de colunista esportivo do Globo)
Não estranha, nesse cenário, que
a torcida do Flamengo não aceite o fato comprovado de que a televisão foi o
fator decisivo para o crescimento rubro-negro no país e hoje no mundo.
Trabalhei 20 anos na televisão em
filmagens de futebol, viajei com a seleção de 58 e com vários clubes em
excursões longas à Região latino-americana e caribenha, como era habitual nos
anos 60. Sei, por isso, o que é uma transmissão tradicional e o que é uma
transmissão da Rede Globo com o Flamengo, nada parecido. A transmissão de jogos
de seu parceiro de longa data (1979) recebem um tratamento de show, como
Faustão e Fantástico. A torcida é focalizada de perto, quase entra em campo, a
emissora mantém um diálogo quase familiar com a torcida e a narração é vibrante.
Um joguinho de nada vira uma atração da Globo com bons índices de audiência,
reforçados pelas “chamadas” insistentes.
Recentemente a Rede e o parceiro
não se entenderam sobre uma pequena parcela do acordo multitudinal e
totalitário. A torcida logo aproveitou para afirmar que a equação era inversa,
a Globo que explorou o Flamengo. Nada
verdadeiro, o acordo, como em geral, era de benefícios mútuos, claro. O que
está acontecendo é fácil de explicar: os campeonatos regionais são fenômenos
regionais e a Rede explora regionalmente. Não tem assim muito interesse. E para
o Flamengo era a oportunidade de criar e explorar o show do Maracanã (Outra
demonstração de força do Flamengo ao receber arbitrariamente o grande estádio,
um marco da cidade e de todas as torcidas para ser “o seu estádio”. O
Fluminense é uma forma de dizer que não foi um benefício só do Flamengo, mas o
Fluminense entra aí como convidado de pedra, não manda nada). Com o coronavirus
e a impossibilidade de encher o Maraca, claro que Globo e Flamengo vão rever o
falso problema.
Além da consolidação do estádio o
Flamengo está testando outas mídias como o FLA-TV e algumas redes
especiais. Dinheiro não falta.
A torcida, agora no céu se
multiplica como virose, aproveitando a baixa dos demais clubes e a
disponibilidade de taças secundárias regionais que a mídia parceira enfeita como
grandes conquistas. Existe ainda uma estratégia
a ser melhor conhecida, por enquanto só posso levantar como possibilidade: as
transmissões de Botafogo, Fluminense e Vasco geralmente iam para alguns
estados, dividindo com o Corinthians e o São Paulo para transmissões nacionais
enquanto o Flamengo tinha transmissões nacionais. Não estranha depois de 30
anos que o Flamengo tenha torcedor onde chega uma antena da Globo.
Uma palavrinha sobre o perfil da
torcida do Flamengo: ela hoje é totalmente inclusiva, do mendigo da esquina ao
investidor no mercado de capitais, passando pelo pessoal da justiça e do
sistema financeiro público. Veja o perfil de seus dirigentes. Houve um
crescimento explosivo, por falta de outras expressões de mesmo porte e o
momento do país, com poucas alternativas de vulto. Frustrações amplificadas. É
marcante de Ronaldinho Gaúcho recolhido numa prisão no Paraguai, deu autógrafo
numa camisa do Flamengo, vestida por um coleguinha também preso.
Vejam também o tratamento que
recebe o Vasco de uma estatal como a Caixa. O Clube tem um dinheiro a receber,
mas está submetido a exigências burocráticas legais que algum dirigente da
estatal (não duvido que seja um flamenguista) está segurando, mesmo
contrariando um princípio legal que dá preferência a pagamento de pensão
alimentícia e salários. O Vasco tem dinheiro a receber e muita dívida salarial,
mas o recurso não sai. Apostaria na
diferença se se tratasse do Flamengo.
Feitas essas reservas, vamos
reconhecer a dimensão que tomou tudo isso. O Flamengo tem “consulados” e até
“embaixadas” em países estrangeiros, formados em grande parte por brasileiros
no exterior e por estrangeiros que admiram o que a Rede Globo internacional
mostra há anos. Mudar o que está feito é impossível com o poder acumulado e a
falta de vontade do Clube da Gávea (que antes tinha uma sede para os negros e
pobres na Praia do Flamengo e uma sede rica na Gávea, onde fazia um dos bailes
de mais luxo do carnaval carioca, o Vermelho e Preto).
Fica claro que a proteção ao
Flamengo custou perdas aos demais clubes, o jogo é de soma zero. Mas buscar solidariedade dos dirigentes e
da torcida do Flamengo não daria mais do que naquilo que os estudiosos chamam
de imunização cognitiva, no
âmbito da neurociência. Incrível
que nesse grupo, às vezes, se encontram pessoas de alto nível intelectual. Cognitiva
vem de cognição, que é o processo de aquisição do conhecimento, incluindo o
pensar, a reflexão, a imaginação, a atenção, o raciocínio, a memória, o juízo,
o discurso, a percepção visual e auditiva, a aprendizagem, a consciência, as
emoções. Envolve os processos mentais que influenciam o comportamento de cada
indivíduo. A imunização cognitiva é um
escudo que permite que as pessoas se agarrem a valores e credos, mesmo que
fatos objetivos demonstrem que eles não correspondem à verdade. A pessoa
cognitivamente imunizada está no terreno da fé, que dispensa o raciocínio
lógico. Para ela, argumentos lógicos não têm relevância. O Flamengo não vê que
todos lucrariam se houvesse uma repartição menos diferenciada dos dinheiros de
transmissão da única e maior rede nacional de televisão?
O Flamengo se transformou
em time de massa por acaso e circunstâncias, não por objetivo e aspirações. A
mesma elite associada ao Fluminense rachou por desentendimentos de escalação do
time e partiu para a criação de uma versão independente. Os fundadores
pertenciam à mesma elite do Fluminense. Como não tinha estádio ficou mais
exposto e evidência dos moradores da Zona Sul da Capital. E como se opunham ao time das elites, não
por razões de classe, obviamente, talvez tenha sido entendido como adversário
do time das elites. As cores fortes da camisa (houve várias tentativas até
chegar à base do modelo atual) e ações mais agressivas do grupo, que enfrentava
a falta de estádio e de recursos e tinha de começar do começo, tornou-se
simpático a uma torcida emergente da Zona Sul. Até hoje o Flamengo é o time da
classe média alta, dos profissionais liberais, dos empregados públicos de maior
hierarquia, e, claro, mais recentemente estendido pelas campanhas da Globo
desde 1979 (procurem as estatísticas de
conquistas de antes dessa data e depois
dela) a todas as parcelas da população cobertas pela Rede.