terça-feira, 4 de agosto de 2009

Artigos

UMA NOVA SOCIEDADE DO TRABALHO

As notícias recentes sobre o agravamento do desemprego, notoriamente na região paulista, colocam o tema na ordem do dia e criam a motivação e as condições gerais para que o país comece efetivamente a considerar uma política nacional de emprego.
A sociedade ocidental esteve historicamente organizada em torno de uma ética do trabalho. Ser desempregado ,dentro dessa ótica, nunca foi nada fácil, rompe-se a auto-estima, sofre-se discriminação e perdem-se valores fundamentais para a coesão e a solidariedade sociais. Ainda não foi encontrado melhor instrumento para o controle social que a disciplina do trabalho. O desemprego é também um enorme desperdício para o país, na medida em que o trabalho é necessariamente um fator de produção.
Na verdade, o emprego é uma solução para muitos problemas, individuais, sociais e nacionais. O emprego estável possibilita realizar inversões em recursos humanos, programar qualificação e eventualmente reconversão do trabalhador e, em contrapartida, dispor do seu compromisso pessoal em relação aos destinos da empresa. Tudo como requer a nova organização do trabalho e o novo modo de produção: trabalhadores envolvidos com os resultados da empresa, capazes de tomar decisões, criar novas soluções para problemas emergentes, trabalhar em equipe, torcer pela empresa e compartilhar riscos e benefícios.
Essa estratégia de organização social faz empresários e trabalhadores co-responsáveis, juntamente com o governo, pela viabilização de um projeto nacional. Possibilita afinal flexibilizar as relações do trabalho, como medida apropriada para ajustar o mecanismo produtivo aos novos tempos, dentro de um contexto de maior transparência e confiança. Começando por melhorar e ampliar as relações dentro da empresa, um pouco ao modelo japonês, de quem se admiram tanto outros traços e se esquece justamente o vínculo essencial do trabalhador com a empresa.
Entretanto não se trata de mera generosidade da empresa e boa vontade do trabalhador. O conjunto dos resultados, tendo em conta os ganhos a médio e longo prazos, tem de ser atraente e atender a interesses diferenciados dos atores sociais e da sociedade como um todo. As empresas precisam assegurar produtividade, competitividade, ou seja, sustentabilidade. Os trabalhadores aspiram a mais estabilidade, melhores salários, condições de trabalho e participação nos benefícios. O governo supõe crescimento e desenvolvimento econômico, com justiça social.
Como viabilizar essa equação aparentemente contraditória? A chave estaria na articulação de um pacto social que estabeleça uma nova cultura do trabalho e administre ganhos de produtividade. Existe no sistema produtivo brasileiro um enorme território de perdas e desperdícios. O corte de pessoal é, nesse contexto, uma saída demasiado simplista, em termos administrativos e demasiado apressada em termos gerenciais. Com a eliminação de ineficiências, muito possivelmente a permanência do trabalhador pode ser não apenas conveniente, mas também necessária. Existe um amplo espaço –ou gordura—no processo produtivo que pode e deve ser esgotado antes que a dispensa de trabalhadores se mostre inevitável ou justificável. Ganhos de produtividade por melhor desempenho global da empresa podem representar um caminho mais justo de combate ao desemprego. Nesse sentido a formação profissional é imprescindível.
Não existe uma medida que sozinha seja capaz de resolver a questão do emprego. Ao contrário, o tema tem de ser assumido no conjunto da economia e da sociedade. A luta tem de ser ganha em cada oportunidade, em todas as instâncias do poder e da estrutura social. Os encargos sociais no Brasil são elevados, comparativamente a outros países concorrentes, mas o custo global do trabalho é baixo, e muitos componentes inscritos como encargos, se eliminados, teriam de ser fatalmente recuperados nos salários. E como encargos não geram encargos.
O custo-país pode ser um dado estratégico se revisado e assumido também por governo e trabalhadores. Se a população dispõe de boa saúde e tem acesso a boas escolas e bom atendimento hospitalar, se a alimentação básica permanece em níveis acessíveis, as condições de trabalho e de salários podem ser melhor negociadas.
O setor informal já não é um setor residual. Na verdade, representa uma parcela significativa do processo produtivo e tem de receber tratamento apropriado, não do tipo restaurador, não mais como enfermidade do sistema, mas como a pré-configuração de um novo modo de produção.
Acordos, discussões, acordos, há um complicado caminho pela frente, mas é necessário enfrentá-lo se a meta é construir uma nova sociedade do trabalho.

Publicado no JB em 4.10.1996



MAIS E MELHORES EMPREGOS

Toda nação necessita de boas escolas, bons empregos e garantias para uma aposentadoria saudável e gratificante. Como essas coisas não existem isoladas, será preciso assegurar também boa saúde e estimulantes relações de trabalho.
Em termos ideais cada país deveria estar em condições de oferecer a cada cidadão a oportunidade para que ele se prepare e afinal aplique sua capacidade no exercício de uma atividade produtiva. Visto de outro ângulo, cada país que deixa de utilizar plenamente esse recurso está perdendo algo de eficácia. Quanto menos utiliza seu potencial humano menos desenvolvido se estaria apresentando. Assim deveria ser. Novas gerações se sucedendo e o indivíduo atuando segundo seu desenvolvimento físico e mental. Mas não o trabalho a qualquer preço. Trabalho exercido em meio ambiente estimulante, seguro e digno, com o trabalhador exercendo um bom domínio do produto em sua totalidade, e participando dos benefícios gerados coletivamente.
A OIT existe precisamente para ajudar as nações a perseguir esse ideal. Foi criada em 1919 em consonância com o Tratado de Versalhes, destinada a promover a justiça social e melhorar as condições de vida e de trabalho no mundo inteiro, adotando a comunhão de esforços de governos, organizações de empregadores e de trabalhadores como mecanismo privilegiado de ação.
A OIT congrega mais de 170 países e o Brasil é membro permanente do seu órgão executivo, o Conselho de Administração, composto por 56 delegados, onde o tripartismo é um princípio essencial (14 delegados empregadores, 14 trabalhadores e 28 governamentais).
As normas internacionais do trabalho, dispostas em convenções e recomendações, junto com a cooperação técnica, que se efetiva em consultorias, programas e projetos, são os meios pelos quais as ações da OIT se realizam. O Brasil adotou cerca de 77 convenções, sendo um dos países com maior índice de ratificações. As principais normas estão referidas aos direitos humanos, destacando-se a liberdade sindical, a eliminação do trabalho forçado, a igualdade de oportunidades e de trato.
A cooperação técnica deve promover e fortalecer o espírito e a essência das normas, criando as condições para sua adoção e desenvolvimento. O programa prioritário da OIT este ano trata dos seguintes temas:
-promoção da democracia, através de uma legislação laboral apropriada, a participação interativa de governo, empregadores e trabalhadores, a adoção de relações adequadas de trabalho e a erradicação do preconceito e da discriminação no mercado de trabalho.
-luta contra a pobreza, através da educação profissional, da geração de emprego e renda e o desenvolvimento de instituições sociais.
-proteção dos trabalhadores, através de condições dignas e seguras de trabalho, da atualização da seguridade social e da adoção de programas compensatórios para os grupos mais vulneráveis.
A OIT desenvolve um projeto internacional em parceria com os atores sócio-laborais, destinado a promover a erradicação do trabalho infantil, sobretudo quando implica um risco grave à saúde ou ao desenvolvimento da criança. O êxito desse projeto permitirá ao país ratificar e consolidar a aplicação da Convenção 138 sobre Idade Mínima de Trabalho.
Também segue, de perto as perspectivas de um processo de modernização das relações de trabalho no país, que pode traduzir-se em formas de negociação coletiva, plena liberdade sindical, qualificação profissional do trabalhador, maior eficácia do sistema de seguridade social e a promoção de melhor ambiente de trabalho.
A questão das cláusulas sociais irá seguramente aquecer os ânimos internacionais, vinculando-se à criação da OMC. Mais além dos significados econômicos que derivam dessa proposta, a OIT vem considerando as repercussões para o desenvolvimento da comunidade laboral. Na verdade a OIT, com a ascensão política dos temas sociais, deverá se colocar no epicentro das grandes discussões sobre o desenvolvimento social mundial.

* Publicado no Correio Brasiliense em 1995



A GLOBALIZAÇÃO DO TRABALHO

Passadas as comemorações dos 500 anos, com todas suas contradições, fica-nos a sensação de que perdemos a oportunidade histórica de fazer uma reflexão séria sobre os fundamentos reais de nossa nacionalidade. E neles é certo que a imigração jogou e joga um papel crucial. Sempre houve alguma globalização, nem precisa o testemunho das novelas.
Mas o Sistema financeiro, pela sua natureza, saiu na frente e já varreu as fronteiras nacionais transformando em quintal esse nosso vasto mundo. Para o trabalhador, entretanto, que no final do século passado já pretendia ser universal, as fronteiras continuam impondo sérios limites. O migrante é um ser marginal, quase sempre submetido a discriminações e exploração. Nos casos extremos os jornais se repetem na denúncia de trabalhadores escravizados em plantas industriais carcerárias. Ainda assim, a história da humanidade foi construída por grandes ondas migratórias. O Brasil deve à imigração uma boa parte de sua riqueza e foi sempre um país generoso e receptivo, o que explica muito o nosso lado tolerante, cordial e amistoso.
Nossa tradição não comportaria reações indesejáveis de xenofobia gratuita, de conseqüências imprevisíveis, ferindo as bases da plasticidade social do país. E olhamos justamente com apreensão o que acontece lá fora e nos festejamos de não ter aqui problemas dessa natureza, reconhecendo também que o mundo precisa elevar os espíritos e buscar o caminho do abraço fraternal, ainda longe, por certo, de ser alcançado.
A legislação brasileira, nesse terreno, é bastante flexível. Fala em “defesa do trabalhador nacional” de forma genérica e estabelece alguns objetivos prioritários. Cabe ao Conselho Nacional de Imigração ( CNI ) operacionalizar a lei através de políticas e normas, as Resoluções, orientando sobre “autorização de trabalho” que é a porta de residência no país. Os dados mostram que cresce bastante a demanda. No caso dos diretores e gerentes isto reflete o programa brasileiro de privatizações. Se o país decidiu abrir ao capital estrangeiro a propriedade de boa parte de suas grandes empresas, fica difícil evitar, por conseqüência, que junto venham os comandos desse processo.
É compreensível o aumento da pressão sobre os postos gerenciais. Deve, entretanto, ser examinada alguma regra que promova o “arejamento” dessas diretorias, obrigando a proporcionalidade por estratos e não na forma inócua da “Lei dos 2/3”, cuja aplicação já é objeto de controvérsias, embora não pareça, como se afirma, que a Constituição a tenha derrogado. A Constituição fala de igualdade de tratamento a residentes, enquanto a lei se aplica aos estrangeiros antes de adquirir a condição reconhecida.
Problema maior está na quantidade de trabalhadores de nível médio, de países fronteiriços, que em geral as grandes construtoras trazem em caráter temporário, por vezes não assim tão provisórios. O argumento é quase sempre a experiência que acumulam de obras anteriores, e que se vão perpetuando em prejuízo da mão de obra nacional. Alegam as empresas necessidade de cumprir cronogramas contratuais e tomam como arbitrárias as tentativas oficiais de introduzir obrigatoriedade de preferência a trabalhadores nacionais. Além da legislação, será preciso convencimento. A solução buscada depende da capacidade do sistema de formação e colocação de trabalhadores de assegurar que pode dar respostas rápidas e eficazes. Aliás, um lindo desafio para testar os investimentos feitos pela sociedade nesse terreno.
Embora quantitativamente os dados não cheguem a assombrar, eles estão crescendo e se torna imperativo conhecer, com estudos sérios e sem precipitações, a onde podem chegar se mantidas as regras atuais.

Publicado no JB em 30/06/00




NOVAS RELAÇÕES TRABALHISTAS

O novo modelo de organização da produção e do trabalho está sentado na revolução introduzida no mundo dos negócios pela informática e seus derivados. Parece que o ser humano não se coloca um problema antes de ter em mãos sua própria solução, como já antecipava um velho e conhecido pensador. Os tempos atuais, de crescimento dos direitos de cidadania, das maiores exigências do consumidor, da padronização das trocas internacionais, dependem de respostas adequadas do sistema produtivo que só se tornaram possíveis com a flexibilização e a sensibilização dos processos, decorrentes dos recursos colocados pela informática e as tele-comunicações. O progresso técnico, sem dúvida, tem colaborado para reforçar a cidadania. Importam as conseqüências: um novo cenário mundial onde convivem várias épocas, realidades não coetâneas, mas submetidas agora a uma lógica da qualidade, que percorre todas as dimensões da vida, condicionando imediatamente alguns segmentos e apenas sinalizando, por enquanto, muitos outros.
A qualidade passa a ser a palavra de ordem para a sociedade pós-moderna. Nos tempos modernos a visão era aquela imortalizada por Chaplin em filme memorável. Na atualidade o padrão aponta para uma produção flexível, mais próxima das aspirações insufladas pelo desenvolvimento das possibilidades humanas e cidadãs e pela concorrência ditada pela globalização simbólica e material.
Os produtos e serviços precisam atender à diversidade das expectativas de consumo e essa condição se irradia em cadeia entre os produtores, desde as fontes primárias. A noção de qualidade será o ponto central que caracteriza o esforço econômico da atualidade. Ninguém se opõe à qualidade dos bens materiais e serviços e todos se preparam para alcançar esse objetivo. Ajustam-se os processos e sobretudo as estratégias e estilos gerenciais.
No conjunto da produção, entretanto, cada vez mais é o trabalho de qualidade um fator determinante. Trabalho de qualidade significa, no contexto da produção flexível, um trabalhador responsável e competente, identificado e envolvido com os destinos da empresa. Empresa consciente do papel e dos direitos do trabalhador, que exige mas também deve retribuir.
Esse novo quadro tem induzido os países a adotar sistemas de certificação do trabalho, um selo de qualidade do trabalhador. Essa idéia, entretanto, parece estranha e ainda incomoda muita gente. Afinal, o grande esforço dos organismos internacionais e do processo ideológico do sistema capitalista se concentra em demonstrar que o trabalho não é (ou pelo menos não deveria ser) uma mercadoria, como denunciava Marx.
Desde algum tempo o método de qualidade total, adotado pelas empresas de ponta, já envolvia na depuração dos fatores de produção o trabalho humano e dele exigia desempenho padronizado em igualdade de condições com os fatores materiais. Essa mesma equação tem orientado um certo número de programas de certificação de pessoas, hoje existentes.
Uma outra vertente de certificação de pessoas decorre da constatação dos sistemas educacionais sobre suas deficiências no atendimento das demandas diferenciadas da moderna economia. Surgiu, então, o conceito de competência que pretende ser distinto de qualificação, que estaria mais ligado ao processo educativo. Competência deve corresponder a tudo que se espera de um trabalhador no desempenho do trabalho. Deve incluir capacidade técnica de acordo a um padrão pré-estabelecido e um conjunto de qualidades ligadas a atitudes, como iniciativa, criatividade, senso de oportunidade, traços colaborativos para o trabalho coletivo, capacidade de decisão, aptidão para solucionar problemas e ainda outras mais. Naturalmente, essas qualidades em doses diferenciadas segundo o nível das funções que deve exercer. De todo modo, tarefa para diferenciados.
O movimento sindical tem feito sérias restrições a esse novo perfil de exigências que afirma trazer a exclusão do mercado de trabalho para uma boa maioria, “stress” para os supostamente privilegiados, sem uma soma de benefícios pelo menos equivalentes. O resultado estaria sendo um mercado de trabalho mais seletivo com maior exclusão de trabalhadores. E para os poucos admitidos no sistema uma entrega total, estressante, de exploração superlativa.
Curiosamente, o modelo anterior, chamado “taylorista-fordista” era acusado, com justiça, de desfavorecer o trabalhador, impondo sua alienação e desqualificação no processo produtivo, como nos “Tempos Modernos” de Chaplin. O novo modelo traz, seguramente, um enriquecimento do perfil do trabalhador, por exigir maior escolaridade e o atributo de qualidades inteligentes e superiores. Melhorou o perfil, mas as regras de trabalho apertam por outro lado, o da devoção corporativa. Os sindicatos, debilitados pela natureza do novo modelo, não encontram a fórmula de atrair o novo trabalhador, ou de mostrar serviço para a nova causa, a dos excluídos. Estes, sem patrocínio, não logram definir canais coletivos de pressão. Os partidos políticos muito apropriadamente, com raras exceções, mais confundem que iluminam sua representação. O fator excludente fica mais vinculado às crises do modelo econômico, às políticas recessivas e à falta de crescimento sustentado. O debate sobre o emprego tem primado pela superficialidade. Propostas como a redução da jornada de trabalho não têm encontrado um denominador comum. O bom emprego está curto e selado.
O emprego, entretanto, é um direito do cidadão e tem a virtude de incorporar muitos outros direitos. A criação de empregos é uma obrigação dos dirigentes, que deveriam renunciar toda vez que, por incompetência, não alcançassem gerá-los. E definitivamente, não se pode distanciar os programas de certificação dos sistemas educativos flexíveis, que assegurem igualdade de oportunidades.

Inédito



A EXTRAPOLAÇÃO DA RIQUEZA

Assistimos nos tempos de hoje a uma formidável concentração de poder e riqueza no mundo. Os sistemas que pregavam ideais de igualdade e fraternidade passam por um período de completa privação, sem fôlego para exercitar o mínimo esforço. Por esse lado, a sociedade humana mergulha nas trevas da modernidade. E justamente quando o desenvolvimento tecnológico alcança dimensões fantásticas e afasta os temores históricos sobre os limites de recursos naturais para a sobrevivência da humanidade. Na verdade os limites são impostos por barreiras política e socialmente estabelecidas. A tecnologia faz a sua parte, a humanidade falha no dever de casa. Basta uma viagem rápida à Europa ou aos Estados Unidos, para sentir o volume acumulado de riqueza. Salta aos olhos, não requer instrumentos refinados de mensuração. Há uma riqueza fabulosa concentrada nesses países ou regiões. Paralelamente, dentro dos países a situação se reproduz em desigualdade. Em toda parte aumenta a distância entre os que concentram a riqueza e os que alimentam a grande corrente dos excluídos. São mundos dentro de mundos. A globalização é seletiva e embora estimule alguma transitividade não diminui o impacto da separação de mundos, ou se preferir, de classes sociais. A estratificação social torna as exclusões relativas e inibe sentimentos de solidariedade. Na nova faixa de pobreza as pessoas trabalham e ganham salários ou rendimentos do trabalho ou de pequenos negócios, que mal respondem pela necessidade de manter a vida em seguimento, não permitem alcançar o que antigamente era identificado como “uma existência tranqüila.” Não importa quanto ganhem, o sistema está montado para que no seu nível de vida tenham de gastar compulsoriamente com a casa, os estudos, os seguros, os consumos supérfluos, os créditos, as provisões e o funeral. Não deve sobrar nada no acerto de contas, e os métodos evasivos de aferição dos índices de custo de vida estão montados para assegurar esse propósito. Ou seja, a classe média atua como afluente que deve alimentar o grande rio do sistema econômico nacional e/ou internacional, o grande estuário do sistema capitalista em vigor.
É certo que a economia de escala produziu uma revolução no consumo de massas, todos têm algum acesso a telefone (eventualmente público) transporte, eletrodomésticos, água, etc. As atrações do circo aumentaram muito desde os romanos e os gastos familiares vão no mesmo sentido. Mas a acumulação, que está na base do modelo capitalista, se tornou coisa exclusiva do Estado ou do próprio mundo das finanças, distante do comum dos mortais. Abaixo dos novos pobres ou relativamente pobres, que sentem que têm ainda algo a defender, vêm os “subexistentes”, parias da nova sociedade mundial, que já nada têm a perder e se tornaram praticamente “invisíveis”. Essa forma de controle social sufocante só poderia dar no incentivo à existência marginal da produção e da vida. A massa de marginalidade cresce ameaçadoramente na sociedade moderna e ninguém pode prever até onde poderá chegar, a menos que se recorra a pura ficção, que deve cada vez mais à realidade, como queria Oscar Wilde. Não existem sinais observáveis, em todo o planeta, de que esse processo acumulativo e concentrador mostre cansaço ou acene para uma conciliação reparadora. A globalização é assumida como “fetiche” e mais justifica que explica a fraqueza dos países emergentes diante dos termos perversos da relação de trocas internacionais. Na verdade, a falta de sinais positivos nesse âmbito não pode ser desculpa inibitória para as iniciativas localizadas. A eliminação de índices elevados de inflação , nesses países, representou um avanço na estratégia da igualdade, mas se revelou também insuficiente. Muitos países perderam, com o processo de privatização, uma expressiva oportunidade de interferir na distribuição da riqueza. Tratando-se da alienação de bens públicos, dentro de uma mobilização de recursos financeiros de grande porte, acumulando um enorme poder de direcionamento político, teria sido o caso de integrá-la em uma decidida estratégia de reengenharia social.
Da mesma forma, precisam ser corrigidas as contaminadas relações entre o público e o privado, que têm gerado perdas unilaterais. A empresa econômica, por exemplo, opera no domínio público, utilizando-se de um espaço que foi preparado com recursos de todos os cidadãos, coletivamente, através do Estado. Deve, então, atender a critérios e regras que coloquem o interesse público em pauta, assumindo definitivamente sua parcela de responsabilidade social, não apenas como marketing, mas como compromisso político.
A administração pública, nos países em desenvolvimento, tem de ser encarada como tarefa relevante e todos os meios de assegurar transparência nos negócios públicos precisam ser implantados e desenvolvidos.
O grave é que o sistema político, estratégico nesse processo de discussão, quando o objetivo é implantar democracia em todas as suas necessárias dimensões (política, econômica e social) reflete no momento uma correlação de forças profundamente negativa. E dele se depende para promover e consolidar as transformações.


JB 22/12/00

A GLOBALIZAÇÃO EM XEQUE

Ninguém, sob qualquer razão ou pretexto, pode justificar a criminosa destruição das emblemáticas torres de Nova Iorque, junto com milhares de vítimas inocentes. Tampouco o sacrifício de centenas de passageiros no altar das assombrosas missões suicidas. Por este lado, está meio mundo estarrecido e indignado.
Outra coisa é buscar entender por que essas coisas acontecem. Afinal, tudo nesse mundo tem alguma explicação e o que não se explica já não é deste mundo.
Parece fácil e batido argumentar que o sistema capitalista tem gerado notável riqueza, mas tem sido incapaz de transferir seus benefícios para toda a humanidade. E muito ao contrário, tem reforçado criminosa concentração do produto internacional bruto e fertilizado enormes bolsões de miséria e horror. A morte de uma criança no Sudão, milimetricamente previsível, não devia indignar menos. O surgimento de países globalmente marginalizados, a perda de prioridade dos valores humanos e a indiferença pelos princípios societários têm sido persistentemente a norma nesse frio cenário da pós-modernidade. Por fácil, o argumento não é menos consistente. Nada alimenta mais o sentimento de revolta que a sensação de desprezo por condições de existência intoleráveis que, entretanto se perpetuam e são até mesmo vistas como naturais pelo pedaço privilegiado do planeta.
Não se trata de culpar os Estados Unidos pelas mazelas do mundo, como as que nos afogam aqui mesmo no nosso país. O exercício imperial é bastante complexo e os próprios parceiros periféricos pressionam muitas vezes pela sua complacência. Todos somos parte dessa culpa, mesmo porque nossos dirigentes têm-se deixado seduzir apressadamente pelos encantos de um mercado sem fronteiras.
Não se justifica e nos causa horror ser testemunhas, ao vivo e em direto, da insanidade terrorista que derrubou aquelas torres, mesmo quando elas possam simbolizar a frieza e arrogância do sistema financeiro internacional. E nos tocou a todos, pois nos demos conta de que lá estava parte de nosso capital humano, como de muitos outros países.
Gloriosas e trágicas torres de Babel. Duro também adivinhar que seu martírio talvez não ajude muito a fazer uma revisão dos destinos da humanidade.
Judeus e árabes seguirão se matando e fazendo uma perversa contabilidade de sangue. Muitos países seguirão destinando milhões de dólares mensais para pagar uma dívida que lhes foi em parte imposta quando sobrava dinheiro no sistema internacional e precisava ser colocado em alguma parte, oferecido a juros atraentes mas logo variáveis, que hoje sigilosamente impedem que haja fundos suficientes para educação e saúde, ou mesmo estradas, embora dirigentes nacionais tampouco pudessem assegurar que esses recursos fossem ali aproveitados.
Os Estados Unidos talvez precisem, por razões políticas e emocionais internas, revidar o atentado diretamente e em tamanho colossal, mas o mundo civilizado depende, na verdade, da eliminação de todas as formas de terrorismo, inclusive o terrorismo de estado. E aí é preciso dar nome aos bois. Sempre foi difícil caracterizar o que é realmente terrorismo. Para muitos o terror de hoje é o programa oficial de amanhã. Para outros, o terrorismo é a guerra do que pode menos. Qualquer que seja a definição, temos de encarar que quase todos os governos já contam com seus terroristas particulares. Os ingleses têm o IRA, os palestinos têm os judeus, os judeus, os palestinos, os espanhóis têm os separatistas, os Estados Unidos têm, para começar, seus “serial killers”. Os atos criminosos contra as Torres, o Pentágono e possivelmente a Casa Branca, tinham nome e endereço definidos: os símbolos dos poderes financeiro, militar e político da maior potência do mundo. A histeria que tomou conta de todo o Ocidente parece não ter assimilado a clareza das intenções. Uma generalização dos atos terroristas acima do padronizado estaria certamente fora de propósito. As ações desproporcionais de revide podem, entretanto, provocar novos e inesperados trajetos à violência. Torna-se necessário pensar em todos os terrorismos e buscar os meios mais efetivos de os prevenir e sepultar. Desde logo, a verdadeira solução não se encontra no uso irrestrito da força, mas em uma política ativa de pavimentação social. Definitivamente, não se trata de uma questão militar. Entretanto, não se conhece ainda na literatura, nos congressos e muito menos nos propósitos dos líderes internacionais um mínimo projeto que pretenda promover uma séria revisão da distribuição da riqueza que a nova tecnologia tem sido capaz de produzir, como conquista da humanidade por inteiro. De novo não basta punir os culpados diretos, mas repensar a sociedade globalmente.

Inédito









A NORMA E O EMPREGO

Os países em desenvolvimento têm realizado um notável esforço de adaptação às novas regras ditadas pela mundialização da economia. Isto sem ter esgotado as possibilidades do modelo anterior, o que traz complicações adicionais. A maior delas é a profunda heterogeneidade do universo do trabalho, o que faz com que nenhuma regra aparentemente tenha sentido. Entretanto, é justamente nesses momentos que a visão dos interesses do conjunto da sociedade, deve prevalecer como referência ordenadora.
A Convenção 158 da OIT sobre dispensas injustificadas pretende oferecer, nesse sentido, um marco referencial genérico para as relações de trabalho emergentes, que deverão dar resposta à nova organização da produção e do trabalho. A 158 não é a “lei da estabilidade” na forma como esta existiu no país ou se aplica no funcionalismo público. A Convenção, na verdade, autoriza expressamente as dispensas por motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos, o que possibilita às empresas “uma adaptação rápida às transformações produzidas no plano da economia em escala nacional e internacional”,como afirma a Comissão de Peritos na Aplicação de Convenções e Ratificações da própria OIT.
O novo modelo produtivo requer a participação qualificada e comprometida do trabalhador, e a visão compreensiva e aglutinativa do empresário, tanto para viabilizar a empresa como para construir a nação.
A questão do emprego é tarefa de todos, e os empresários como promotores privilegiados do processo produtivo detêm uma responsabilidade particular com as condições que esse processo assume e com as conseqüências que ele gera na sociedade em geral.
A Convenção 158 da OIT é antes de mais nada a proposta de um novo pacto e de uma nova cultura nas relações de trabalho. Ela traduz fielmente os princípios da OIT que defendem a cooperação entre empregadores e trabalhadores, sobretudo na forma da negociação coletiva. A 158 não pode ser interpretada como uma camisa de força e na verdade ela, se reconhece, corresponde plenamente ao espírito e aos termos da Constituição Brasileira de 1988, que trata da “relação de emprego, protegida contra despedidas arbitrárias ou sem justa causa”. Ela é extremamente flexível e possibilita aos países que a ratificam a exclusão de numerosas situações e categorias de trabalhadores, enquanto não alcançam condições apropriadas. Inclusive pode ser limitada a empresas com certo número mínimo de empregados. As razões que não justificam dispensa são, na verdade, razões de reconhecimento universal e incluem por exemplo, raça, gênero, opiniões políticas e prática sindical. Nenhum absurdo.
O mais importante é que estimula claramente o bom entendimento entre patrões e empregados, dentro de princípios necessários à moderna relação de trabalho, como solidariedade, respeito e compromisso superior com os destinos de uma nação. Não existem razões substantivas para temer-se a 158. Um estudo realizado pela OIT sobre as justificativas apresentadas pelos países que não adotaram ou que pretendem adotar a Convenção, indicou que não se apresentam reais impedimentos, na maior parte dos casos, para uma eventual decisão de ratificação. Parece ter havido certa dificuldade de compreensão do sentido de algumas idéias da Convenção, mais inovadoras e flexíveis do que teriam sido as expectativas.
O que realmente muda,com a 158, é a obrigação da empresa demonstrar sua necessidade de dispensa, e essa demonstração implica tempo e envolvimento com as organizações sindicais. Pode ser difícil no começo mas seguramente fará bem à empresa que pensa no futuro e tem de vincular-se à corrente econômica internacional. E fará bem às políticas de governo que buscam a paz e a justiça social. Cumpre entretanto advertir que a 158 não é a solução para todos os problemas do emprego.


Publicado no Correio Brasiliense em 1997 em função da renúncia que o Brasil faria, logo da entrada em vigência da Convenção no país.







A OBSESSÃO PELO EMPREGO

As taxas de desemprego vêm aumentando, o IBGE finalmente se curva à evidência da maior complexidade do fenômeno, e o novo governo anuncia sua obsessão pelo emprego.
Por sorte o emprego não nasce em árvores. Com o desmatamento irrefreável que se assiste no país, estaríamos rapidamente em um deserto. Na verdade o emprego nasce de muitas maneiras. O problema está na concepção de mundo que tem prevalecido, onde a distribuição dos benefícios do progresso tecnológico obedece à relação de poder na sociedade, e não a valores universais de justiça e solidariedade.
Referidos os fatores de gerar emprego ao poder das facções sociais, ganha o capital e este vai impor sua lógica de rentabilidade.
A obsessão pelo emprego, do presidente eleito, obrigaria a mudar essa concepção da organização social. Teria o novo governo condições de reunir as forças necessárias para mudar a lógica perversa instalada no sistema econômico nacional?
Na verdade, podem faltar empregos, mais ainda. Porque a euforia da chegada de Lula vai seguramente alentar candidatos que já se haviam retirado do mercado por não acreditar em suas chances.
Pesa muito o declínio da filosofia, ninguém já pergunta sobre o para quê das coisas. Ou seja, não contam mais as finalidades últimas. Na economia o ser humano se tornou um ente invisível, imaterial. Amartya Sen, Prêmio Nobel de economia, depois de identificar que “a natureza da economia moderna foi substancialmente empobrecida pelo distanciamento crescente entre economia e ética” tem argumentado com insistência sobre os benefícios que poderiam ser alcançados pelo exercício de aproximação entre esses dois campos. O máximo que logramos nesse terreno é que estaríamos formando sociedades “panglossianas”. Fica demonstrado, dizia Pangloss, personagem de Voltaire, “que as coisas não podem ser de outra forma: pois, tudo sendo feito para um fim, tudo é necessariamente feito para o melhor dos fins”. Viveríamos então no melhor dos mundos possíveis. Como pareceu acreditar o Governo FHC que também argumenta na mesma base da democracia possível, para justificar seus eventuais tropeços. Cancelem-se as utopias!
Nossa imaginação foi materializada para privilegiar as conquistas que custam dinheiro e assim alimentar a corrente utilitária do capitalismo triunfante. Até mesmo a Sociologia se deixou atrair pelo pragmatismo das teorias de alcance médio e trabalha dentro dos limites do suposto possível.
A Organização Internacional do Trabalho realizou em junho mais uma Conferência Anual e a questão do emprego deveria, por exemplo, ter assumido as primeiras páginas da mídia, pelo menos em países tão faltos desse benefício, como o Brasil. Mas não foi isso que se assistiu. As sociedades não estão sendo construídas para alcançar o paraíso para todos, mas para equilibrar os orçamentos primários e assegurar os pagamentos internacionais que alimentarão a concentração de renda e sobretudo a concentração da riqueza em alguns poucos países. Aqui deveríamos valer-nos de Dahrendorf, sociólogo alemão contemporâneo, que adverte não haver “qualquer sinal de que a riqueza do primeiro mundo....irá se espalhar para os demais”, como estaria nos fundamentos da globalização.
O objetivo do emprego como lógica principal de ordenamento da economia não logrou conquistar a vontade política de nenhum país durante o longo período de construção industrial, desde o século XVIII, e agora entramos em novos cenários econômicos, com as novas tecnologias, sobretudo a informática, a terciarização e todos seus desdobramentos, sem que o emprego seja assumido como fator determinante das decisões no plano econômico. Pareceria que a luta pelo emprego estaria mesmo perdida e a sociedade teria de buscar novas fórmulas para sua organização e a distribuição funcional dos benefícios do processo histórico de construção da riqueza.
No Brasil não estão menos sombrios os horizontes, em especial a curto prazo. Com o perfil de dependência adotado e com os freqüentes curto-circuitos da economia, cada vez se reduzem mais as chances do emprego, cada vez se torna mais seletivo e individualizante, colocando enormes barreiras para o movimento sindical, que busca, ainda assustado, o re-equacionamento de sua destinação.
Como se sabe, só existe uma forma de criar emprego: fertilizando o terreno para que se conjuguem positivamente o investimento e os recursos técnicos e sociais. O crescimento da massa ativa é variável dependente de investimento, que por seu lado requer decisão política e incentivos. A racionalização de empresas e a qualificação de pessoal devem acompanhar necessariamente esse mesmo exercício. E dependem de fontes, que no Brasil estão limitadas pelo serviço da dívida, assunto feito tabu pelo governo e engolido a seco pela oposição.
Embora a lógica essencial do sistema passe pela aplicação de recursos, basicamente financeiros, em certas circunstâncias pode funcionar o capital social, o capital técnico ou mesmo uma pequena propriedade como pontos de partida, fato característico do setor informal. Mas esse esforço teria de multiplicar-se quase infinitamente e ainda assim dependeria do desempenho da corrente econômica principal.
Lula tem razão, só se cria emprego agindo com obsessão. Mas é um problema, antes de tudo, de mudança cultural. E uma tarefa coletiva. Novas relações de trabalho, como propunha a Convenção 158 que o Brasil ratificou e um ano depois denunciou. Nela o uso do mercado interno de trabalho diminui a pressão da dispensa e orienta a re-colocação pela própria empresa. No mesmo sentido, os projetos micro-regionais podem potencializar recursos escassos e capacidades latentes na própria população, e esse mecanismo pode ser apropriado em todo o país. Lula reacendeu a utopia. E nós que somos culturalmente chegados a um marco simbólico para mover-nos, estamos ganhando mais uma oportunidade para construir um país mais solidário.


Publicado no JB em 31/12/2002



O FIM DO EMPREGO

Não custa repetir que a mundialização da economia e a revolução tecnológica são responsáveis diretas pelas grande transformação que se dá no mundo do trabalho. Isso para ficar no assunto que nos interessa, porque na verdade os efeitos se traduzem em todas as dimensões da vida humana.
A sociedade tem estado, nos últimos 50 anos, pautada por uma forma de estruturação que tem na ética do trabalho seus fundamentos essenciais. O trabalho tem sido um componente estratégico da organização social. Todos os elementos dessa ordenação vieram de um modo de produção que valoriza três ingredientes: matérias-primas abundantes, mão-de-obra barata e produção em escala.
Como sabemos, essas vantagens estão perdendo alento com a nova lógica de produção. Na verdade, há uma completa subversão de um pacto social do trabalho que vinha administrando as relações sociais até a atualidade.
A longo termo o trabalho continua sendo um componente imprescindível da equação social, mas o seu efeito foi mediatizado pela intensa incorporação tecnológica e pelo grande espaço alcançado pelas intermediações econômicas e financeiras.
Essa tendência é própria do modelo de produção vigente que tem no declínio do fator trabalho um resultado inerente à sua lógica principal. Mas a velha fórmula de que a economia precisa de produtores e de consumidores persiste e esse trabalhador excluído do processo produtivo hoje, terá de ser recuperado em algum ponto do sistema econômico, mais adiante, como consumidor. A globalização tem permitido uma transferência no tempo e uma transposição no espaço, através da ruptura das fronteiras nacionais. Isto tem dado aos produtores a possibilidade de prescindir do consumidor imediato, mas esse círculo terá de se fechar em algum momento, quando os outros produtores de todos os países também exigirem consumidores extra-territoriais. Essa equação não tem prazo, mas terá de ser concluída, por sorte para a humanidade.
A OIT defende a possibilidade do pleno emprego, tomando esse conceito de uma maneira mais ampla que inclui o auto-emprego e uma taxa razoável de disponibilidade ou mobilidade. Medida a chance de emprego pela quantidade de horas trabalhadas no mundo, a equação se apresenta positiva, ou seja, o trabalho continua crescendo. As dificuldades se agravam com a modificação ocorrida na oferta de mão-de-obra, pela assunção do âmbito familiar como unidade produtiva de referência. De fato, o critério de atendimento a necessidades mínimas foi reavaliado não mais em função de um chefe de família responsável pelo orçamento doméstico, mas de toda uma família trabalhando. Embora inquestionável, isso contribuiu para precarizar os salários, trazendo dificuldades adicionais à questão do emprego.
Enfim, se a massa de trabalho continua crescendo, dificilmente se pode imaginar o fim do emprego. O que está obviamente entendido é que o emprego muda drasticamente de perfil. Resta então imaginar como irá configurar-se o novo paradigma nas relações do trabalho. O cenário que se apresenta, atualmente, é o de uma realidade em transformação e não permite uma fotografia de contornos definidos. O que muda significativamente no emprego, com o novo modelo de produção flexível, é o papel da produtividade. Vista com talvez justa desconfiança pelo sindicalismo no passado, a produtividade passa a ser o elemento essencial da nova estratégia. Se antes, no modo de produção com mercado cativo os aumentos salariais e outros benefícios conquistados pelo trabalhador podiam ser transferidos folgadamente aos preços, em um mercado ativo essa compensação encontra mais dificuldade, em função da competitividade a que supostamente as empresas passam a ter no novo modelo econômico.
Setores hoje considerados marginais ou informais não podem mais ser tomados como resíduos do sistema. Ao contrário, estão se tornando a nova onda e portanto há necessidade de delinear-se esse novo cenário para a adoção de medidas de política ativa que possam promover uma justa distribuição dos papéis e dos benefícios na nova sociedade.
Existe, por outro lado, um crescimento do chamado terceiro setor, onde se movimentam atividades não remuneradas e de forte satisfação pessoal. As tendências de envelhecimento da pirâmide social obrigam a considerar a necessidade de um montante em torno de 10% da população ativa passe a uma etapa de desaceleração do trabalho, que não significa necessariamente a parada total. O trabalho poderia ir diminuindo de horas e os salários compartidos entre sistemas de seguridade e empresas.
Está claro que as forças econômicas por si mesmas não gerarão um novo modelo com justiça social. O puro crescimento da economia não é condição suficiente para distribuir a riqueza. É papel do Estado administrar o interesse público, intervindo nesse processo de modo a assegurar uma melhor distribuição de renda, necessária para instalar o equilíbrio social.
Em resumo, o destino do emprego depende de uma ação do Estado, mas está sobretudo nas mãos da própria sociedade, desde que as elites não se isolem do interesse público e participem de esforços integrados para alcançar um novo pacto social no campo do trabalho.

Publicado no JB em 14/02/97





A PARCERIA SOCIAL DA EMPRESA

A revolução tecnológica, sobretudo com a informática e as telecomunicações, propiciou a aceleração das transações econômicas internacionais, intensificando o fenômeno da globalização, que reforça o poder hegemônico das nações industriais e rompe o equilíbrio social forjado pelo modelo de produção “fordista”, sobre o qual se levantou o chamado Estado do Bem-Estar-Social. Uma das conseqüências dessa nova orquestração, foi a ascensão do espaço privado a uma posição dominante na correlação de forças dos países em desenvolvimento. E a empresa privada foi investida de todos os valores que consagram essa cultura emergente. Tornou-se assim o centro irradiador de uma nova concepção da organização e das relações de trabalho. A empresa privada ganhou luzes e assumiu papéis de maior relevância, passando a ser exemplo de eficiência e de modernidade. A empresa passou a ser o foco de uma nova ordenação social e o empresário o modelo de cidadão, a que deveriam aspirar, por exemplo, os incompreendidos funcionários públicos.
Por sua vez, o consumidor foi promovido a agente indutor do processo produtivo, aquele para o qual estariam voltadas todas as atenções e prestações. O consumidor ungido de todos os poderes.
Passou-se a falar da empresa inteligente, da empresa cidadã e da empresa que aprende. De vilã do passado, acusada de ser um âmbito de exploração do trabalhador e da sociedade, passa como mágica a agente virtuosa dos novos tempos, da modernidade. Instituições estão sendo criadas, pelas próprias lideranças empresariais, para promover e explorar essa nova trilha, a da responsabilidade social da empresa, e muitos livros são escritos para demonstrar as vantagens econômicas dessa avançada postura cívica.
O maior processo de privatização do planeta foi concebido com base nessa nova imagem do setor privado, onde parece ter lugar tudo que vale a pena, tudo que é virtuoso e eficiente.
Quem sabe, veremos instalada, um dia, essa nova utopia?
Por enquanto é possível olhar o outro lado dessa realidade, em que o consumidor vive, em verdade, uma rota de surpresas e ambigüidades.
A empresa resultante da globalização e da revolução tecnológica, emerge absoluta no novo cenário da modernidade, mas ao contrário das virtudes apregoadas, não conseguiu ainda internalizar a nova missão. Mais que inteligente, esperta, dentro de um pragmatismo que não rejeita, por exemplo, o uso dos espaços indefinidos de uma legislação trabalhista confusa e permissiva. A empresa moderna despejou as funções acessórias, desfez-se do que dava mais trabalho e ficou com o pudim da produção. Os trabalhadores mantidos, foram agraciados com vantagens aparatosas, mas em troca devem entregar corpo e alma e romper com seus necessários representantes, os sindicatos. Os primeiros sintomas de esgotamento dessa fórmula já foram sentidos em países avançados.
Os demais caíram no desemprego ou foram absorvidos por pequenas e mal formadas empresas, com todos os ônus e pesadelos dos pequenos nas grandes engrenagens. E a informalidade foi o resultado mais evidente.
Quanto ao consumidor e seus poderes, basta olhar as contas que chegam invariavelmente cada mês e o acúmulo nas audiências dos órgãos de defesa. Sempre existe um número a mais, uma chamada telefônica não realizada, um gasto de luz surpreendente, uma reserva aérea menos conveniente, um aumento de pedágio, apesar de mais carros circulando, um preço cartelizado de remédio ou da gasolina e uma quantidade de serviços que só agora têm custo, novos danos para o orçamento familiar, como no ostensivo exemplo dos bancos. São pequenos valores individuais que tomados em grande escala somam enormes adicionais livres para as empresas.
Os economistas sabem bem explicar essa esperteza: o consumidor mede o esforço que custaria reclamar, sem garantia de um resultado favorável, e desiste. Fica legitimada a rapina.
E o que falar das recentes confissões de conhecidas multinacionais, que omitiram falhas graves em seus produtos, com sérios riscos para os consumidores? Não será pequena a tarefa das instituições promotoras do selo de qualidade.
A nova institucionalidade brasileira, que se pretende eficaz para as novas funções de controle, já foi desacreditada pelo próprio órgão inspirador, o FMI. Em relatório de alguns anos atrás, analisando situações semelhantes, na Ásia, aquela entidade reconheceu que os governos de países em desenvolvimento não têm a capacidade de evitar a corrupção interna e de controlar grandes empresas resultantes de processos de privatização. Somente sociedades organizadas e estruturas democráticas transparentes teriam condições de exercer algum controle sobre a atuação dessas empresas, tudo o que países em desenvolvimento não possuem.
Ou seja, só pode ser ingenuidade imaginar que as chamadas agências controladoras, recém criadas para setores importantes da economia, teriam força para obrigar o cumprimento de regras com as quais as empresas não comungam. E a atualidade tem demonstrado justamente que após encenações de força, o assunto fica no esquecimento, já que a mídia e a memória de boa parte da população não mostram grande empenho em seguir por muito tempo um tema logo desgastado na opinião pública. Essas agências parecem destinadas a reproduzir velhas experiências de autarquias já desmobilizadas.
A empresa vai continuar esperta por algum tempo, até que “o inesperado faça uma surpresa”, porque felizmente a história está feita de grandes acasos e sempre é possível manter uma esperança.

Publicado no JB em 09/11/00



SOCIEDADE CIVIL E RESPONSABILIDADE SOCIAL

Não se sabe bem o tipo completo de sociedade que se está gerando no mundo ocidental. Sabe-se que o Estado foi condenado e deve entrar em declínio, cedendo espaço para a iniciativa privada espontânea. Sabe-se que as fronteiras nacionais estão sob fogo cruzado e apesar das regras não serem iguais para todos, em tese não se dá guarida a políticas protecionistas. Na mesma rota, todos os campos da existência humana estão sendo submetidos aos domínios do individual e do privado. A ideologia dominante descrê da capacidade do coletivo para organizar a sociedade, ou pelo menos assim se faz crer. É o liberalismo em suas diversas versões tomando conta do terreno. Ninguém espera ou acredita que seja esse o fim da história, mas enquanto não muda o desfile, parece necessário repensar o papel das organizações civis e promover em outros termos o fortalecimento das estruturas diferenciadas da sociedade.
Na terraplanagem neoliberal foram os empregados públicos condenados à fogueira, por seus perfis tidos como fora do tempo, vinculados ao mal funcionamento dos governos, à corrupção no trato da coisa pública e mal serviço à sociedade. Já os empresários, foram projetados ao cenário das virtudes e da boa engenharia na construção da riqueza, verdadeiros ícones da modernidade. Mas parece que em casa de celeiro, espeto de pau. Todos os dias vêem-se na mídia a adulteração de produtos, a elevação especulativa de preços, a sonegação de contribuição à previdência, a omissão de informação significativa ao consumidor, e uma infinidade de transgressões todas elas atribuíveis ao que comumente se reconhece como empresários. Alguém dirá: vão-se os padres, fica a igreja. Pode, mas já seria o domínio do liberalismo religioso, ainda não ousado.
Por sua vez, o Estado abdicado de poderes já não domina com eficiência nem mesmo o que se considerava seu privilégio exclusivo, o uso da força física. Tendo criado à sua semelhança os órgãos reguladores, fazendo uma aposta na reprodução da lenda de David contra Golias, mas já os identificando com o desgaste de autorizar aumentos de tarifas e preços, o Estado acabou gerando dependência dos próprios recursos institucionais, que precisam ser mobilizados para assumir o papel de controle do desempenho das funções sociais privatizadas. Em última instância, órgãos privados especiais precisariam assumir as necessárias tarefas de controle da nova engenharia social. Como no caso dos CREAs, OABs e assemelhados que estão justamente atribuindo-se o dever de garantir bom desempenho de seus quadros em contrapartida das regras liberais e assim ajudando a sociedade em geral. Da mesma forma, cumpriria às representações empresariais ampliar suas funções de modo a regular, dentro do espírito da iniciativa privada, o bom comportamento de seus associados. E os sindicatos fariam igualmente sua parte entre os trabalhadores em geral, buscando a criação de uma nova cultura nas relações de trabalho.
Seria difícil aceitar as coisas como estão se desenhando, onde o cotidiano do cidadão está consumido em reclamar individualmente dos maus serviços, dos pequenos erros talvez intencionais das grandes empresas e dos novos oligopólios criados pela privatização. Sairia muito menos onerosa para a sociedade a fiscalização institucional, a única que talvez consiga enfrentar as contraditórias virtudes do empresariado. Sem abdicar, naturalmente, do juízo em última instância, que somente a sociedade em conjunto pode exercer, especialmente no exercício eleitoral, que deve ser por isso mesmo aprimorado.
E finalmente seria conveniente dar asas ao cooperativismo. Afinal, talvez não exista outra entidade tão próxima ao mesmo tempo do capitalismo e do socialismo, sem enredar-se com qualquer das partes. Um mistério da história do mundo têm sido as resistências ao cooperativismo, de que parece serem todos temerosos. Entretanto, casos concretos de sucesso poderiam ser apresentados aos milhares e também inexplicáveis dificuldades.
Em Niterói uma cooperativa escolar, que está fazendo o que o Estado tinha de fazer, não se livra de impostos e só de IPTU paga cerca de 4 mil reais. Cooperativas de trabalhadores, que poderiam ser de grande ajuda para a crise de emprego, são desvirtuadas por inescrupulosos e falsos empresários, que registram cooperativas fraudulentas, apenas para fugir da legislação trabalhista. Muitas cooperativas simplesmente não prosperam porque não conseguem enfrentar concorrência desleal de firmas particulares que não pagam impostos e não respeitam obrigações sociais.

Publicado no JB em 4/07/01



SEGURIDADE SOCIAL E EMPREGO

A sociedade internacional não decidiu ainda enfrentar a discussão sobre o tipo de sociedade que afinal desejamos, talvez pelo esforço que já representa viabilizar o presente, com o excesso de peso que lhe transfere o passado.
Por enquanto são apenas alguns analistas que exploram sobre os cenários possíveis para um mundo pós-industrial onde as máquinas acumularão a grande tarefa de produzir os bens necessários para assegurar o abastecimento básico de uma população que terá de encontrar novas formas de ocupação fora do mercado tradicional de trabalho.
Haverá no futuro menos empregos e serão diferentes do tipo que hoje observamos. Então, como assegurar que os bens produzidos cheguem distributivamente a toda a população, atendendo pelo menos às proporções mínimas recomendáveis socialmente? Como gerar uma repartição justa acima da linha de necessidades básicas? E o que fazer do tempo livre?
A estrutura da produção e sobretudo os critérios de participação e distribuição, não permitem ou não têm permitido a consolidação de uma sociedade socialmente equilibrada e justa. Ao contrário, a grande maioria da população do planeta tem encontro marcado com um nebuloso final de vida.
O consenso internacional já reconhece limites mínimos de responsabilidade do Estado. A Convenção 67 da OIT, de 1939, prescreve que “os regimes de seguridade dos meios de vida deveriam aliviar o estado de necessidade e impedir a miséria, restabelecendo, em níveis razoáveis, as entradas perdidas por causa da incapacidade para trabalhar (compreendida a velhice) ou para obter trabalho remunerado ou por causa da morte do/da chefe de família”. Diz ainda que “as necessidades que não estejam cobertas por um seguro obrigatório deveriam estar cobertas pela assistência social”.
A seguridade social não pode ser apenas um instrumento contábil de retribuição financeira, mas, ao contrário, um mecanismo essencial de organização das aspirações de futuro de uma sociedade. Seu pesado envolvimento com os problemas do presente, não deve supor uma barreira para os projetos de construção de uma sociedade mais justa.
Existe, por exemplo, a necessidade de adotar os princípios atuariais dos grandes números para promover equilíbrio econômico-financeiro, mas esses cálculos não têm de ser os comandos privilegiados do processo decisório, embora também não possam ser desconsiderados. O sistema deve também oferecer alguma forma de redistribuição de renda, em favor da solidariedade e da igualdade social, ainda quando não possam ser os únicos instrumentos para esse fim.
No fundo, a seguridade social paga a conta de um conjunto considerável de fatores “externos”, que não funcionam devidamente, como educação, saúde, lazer, meio-ambiente, e portanto tem de ser recompensada. Afinal, é um dos pactos mais importantes da sociedade moderna, como instrumento decisivo de integração. Isto implica seguramente no compromisso de atender aos já retirados, tendo claro o eventual custo a suportar por parte dos que trabalham.
O auto-financiamento tem sido a lógica de argumentação sobre a base dos sistemas com contribuições tripartites, onde a parcela fiscal se faz indispensável para corrigir déficits originados por vezes pelo próprio Estado, por descumprimento de compromissos ou ineficiência nas gestões social e financeira. Não existe, na verdade, nenhuma razão definitiva para não aplicar recursos do tesouro ou destinar recursos obtidos em jogos autorizados, como loterias, na complementação previdenciária. O sentido estratégico da destinação justifica plenamente o gasto. Afinal, para quê se arrecadam impostos e se usam recursos públicos senão para devolver à sociedade em forma de serviços e benefícios? O peso de uma dívida externa extravagante não pode ser omitido, ele impede que recursos sejam aplicados com maior propriedade.
Uma idade adequada para o retiro depende do nível de desenvolvimento do país e dentro do país, do extrato social do trabalhador, mas não existem regras rígidas para determinar a idade limite e o tempo de benefício que teria direito a desfrutar. O momento de retiro não tem de coincidir com o último alento do trabalhador. Cada vez mais, por imposição da realidade, deverá estender-se o tempo de lazer, seja de um lado por desocupação forçada, seja de outro por acumulação de riqueza no mundo. O regime ideal é aquele que permite ao beneficiário retirar-se quando mais considerar conveniente, de acordo com sua situação pessoal e familiar, obviamente com os prêmios e castigos necessários para quem retarde ou adiante a decisão. Convém apontar também a prática internacional de reduzir em torno de 20 por cento o benefício do aposentado, considerando que ele já não está obrigado a gastos de representação laboral. Inquestionável ainda a condenação de alguns valores absurdos a que chegam algumas aposentadorias no país, assunto de moral pública e polícia.
Na verdade, uma atitude aberta de discussão é necessária e deve favorecer um exame mais profundo e amplo da seguridade social, e quem sabe, lançar as bases para um diálogo nacional sobre o futuro que está no sonho de todo brasileiro.

Inédito



REENCONTRO COM O SOCIAL


Para um pensador alemão da atualidade persiste no mundo um grande dilema: os que se preocupam em produzir não falam e não se entendem com os que se interessam pela distribuição da riqueza.
Igualmente, alguns anos atrás, um dirigente da CEPAL, um órgão regional das Nações Unidas, procurou demonstrar que por aqui havia países que só produziam, sem distribuir, países que distribuíam, sem produzir, e países que nem produziam, nem distribuíam. Faltava exatamente aquele que produzisse e distribuísse e ele chamou essa ausência de “casillero vacío”. Betinho, em sua sabedoria, falava algo no mesmo sentido, quando desafiava o pessoal da economia a declinar sobre a pobreza. Como sabemos, sem resultados. Coerentemente com a constatação do "casillero vacio", a CEPAL propôs um modelo de desenvolvimento a partir da estratégia de eqüidade, usando o social como recurso de transformação, uma fórmula que não chegou a ser experimentada por nenhum país, por uma razão óbvia: o assalto avassalador do modelo neoliberal lançado como efeito demonstrativo no Chile, por coincidência o país séde daquele órgão. O social continuou recebendo tratamento residual, correspondendo mais ou menos a tudo que não envolvesse diretamente as equipes econômicas dos nossos países.
A assunção do atual governo, em 95, acendeu esperanças de que chegara o momento para que o Brasil assumisse, finalmente, uma posição de liderança internacional no domínio social. A projeção, já não no sentido do “terceiro mundo” ou da “terceira via”, mas de uma autêntica democracia. O país se mostrava ideal e competente para essa ambiciosa aventura: acumulava os problemas sociais mais agudos e dispunha do talento de recursos humanos para sua solução. De sobra, assumia na presidência um reconhecido sociólogo. Tratava-se então de romper o denunciado e reiterativo hiato histórico, realizando uma verdadeira reinvenção do social, um novo enfoque tomando o econômico em seu verdadeiro sentido, de uma ciência social, e o social sem traçados ingênuos.
A opção pela igualdade vai esperar muito tempo mais. Os países europeus, de onde partiam, para o bem ou para o mal, as grandes formulações sociais do passado, por alguma razão entraram em recesso. Não é seguramente o fim da história, mas é certo que faltam novas utopias. O pensamento político do início do século previa o advento do socialismo como superação do capitalismo no auge. O problema é que ninguém pôde até hoje determinar esse momento do capitalismo, quem tentou falhou. Enquanto isto, o valor trabalho foi perdido no caminho e a tecnologia tomou a cena. Os países já não dependem de quantidade de mão-de-obra e os trabalhadores apenas produtivos não são determinantes, enquanto os trabalhadores estratégicos não precisam ser numerosos. A equação do emprego será dramática, se não se encontram novos argumentos para a humanidade.
O Forum de Porto Alegre está ainda longe do ponto de encontro, mas foi um avanço, comparado aos protestos de rua de ocasiões anteriores. Estes, entretanto, foram também importantes para propiciar Porto Alegre. De todo modo, há uma nova esperança no ar, podemos ser otimistas e esperar que em algum momento da história o benefício social possa ser tomado como critério ordenador do modelo econômico. Temos agora, pelo menos, um ponto de referência para dirigir nossos esforços e fazer nossas apostas.

Publicado no Jb 12/02/01



O SINDICALISMO NUMA ENCRUZILHADA

Acaba de ser lançado o relatório da OIT sobre o “Trabalho no Mundo” que não deixa dúvidas: o terreno das relações do trabalho está profundamente minado. A primeira dificuldade apontada pela OIT se situa no processo de “globalização”da economia e na conseqüente aceleração da competitividade. A elevação das exigências reduz enormemente o espaço para as negociações internas nos países. A OIT chega a perguntar, quanto às relações de trabalho, se resta ainda algo a negociar. Os chamados atores sociais vêm perdendo autonomia e margens de manobra. O outro fator limitante é o próprio crescimento de um setor não estruturado da economia, para o qual não dispõem os países de políticas e instrumentos adequados.
O relatório da OIT indica algumas causas adicionais: a diminuição do emprego industrial: a necessidade de atrair categorias recentes de trabalhadores, como mulheres, jovens e profissionais qualificados: a maior liberdade de ação das empresas, devido aos avanços tecnológicos e gerenciais; e a decisão dos países de sinalizar positivamente para as inversões estrangeiras, que requerem políticas macroeconômicas de corte “desinflacionista”.
Os sindicalizados são hoje cerca de 164 milhões em todo o mundo. Os dados revelam, efetivamente, que há um declínio nos índices de sindicalização, com algumas exceções, casos da Espanha (+92%), Chile (+89%), África do Sul (+127%), Filipinas (+69%). Os declínios mais acentuados nos últimos dez anos ficam por conta dos antigos países do Bloco Socialista, logo seguidos por Israel (-75%), Portugal (-44%), Uruguai (-32%), Venezuela (-32%), e França (-31%).
Mas a própria OIT adverte que o poder de um sindicato não depende apenas do número de membros. Realça a força mobilizadora das centrais sindicais, como na França e Venezuela, constituindo-se mais um sindicalismo de militantes que de afiliados.
O relatório assinala que os governos mantêm o interesse de associar os interlocutores sociais “na tarefa de buscar equilíbrio às diferentes variáveis econômicas, que são a produção de bens, sua distribuição e a criação de postos de trabalho”. Persiste a necessidade de promover equilíbrio inovador entre valores individuais e coletivos, entre eficácia econômica e desejo de proteção. A tendência a levar para dentro da empresa as decisões sobre relações industriais tem contrapartida nas idéias de cooperação, participação e aperfeiçoamento de recursos humanos e na reabertura do debate sobre a responsabilidade social das empresas.
Também as organizações de empregadores se encontram com dificuldades, segundo o documento da OIT. Elas teriam perdido algumas das tarefas de negociação e decisão, e adotado as de coordenação e prestação de serviços.
Enfim, a crise é de transformação. Algumas centrais mais dinâmicas já estão olhando além das próprias fronteiras e abrindo suas portas a novas formas de aglutinação e associação. Encruzilhadas exigem opções, decisões. E a OIT reconhece que esforços significativos de ajuste estão em marcha e podem ser observados.

Publicado no JB em 10/11/97




ILHAS DA FANTASIA

Ilhas da Fantasia não existem, ou não resistem. Nos contos de fada, para dar certo só no final, com poderosa ajuda da madrinha. Mas já não sobram tantas madrinhas, ou padrinhos. Como então se pode pensar que uma polícia seria pura e leal, virtuosa e cidadã? Como ser tudo isso numa sociedade que não é nada disso? Poderia uma polícia sobreviver como uma flor no lodo? Só nos romances e novelas. O país está muito viciado em sublimações, isto é, na substituição ritual do titular pelo acessório, do principal pelo adjacente. Os verdadeiros autores conseguem o milagre de descolar de suas responsabilidades, sempre atribuídas a figuras secundárias.
O Brasil entrou diretamente no pós-moderno, ou talvez melhor, no pleno surrealismo. Aqui se instalou o inusitado, a prevalência do anódino, a confusão ética, o conflito de valores e a inversão do senso comum. Um caso para todos os analistas sociais do mundo se curvarem. Um desafio para sociólogos ativos ou transitivos. Pretende-se a exclusão de um prefeito mas se desoneram os parceiros, esquecidos de que corruptores e corrompidos são igualmente corruptos. Confia-se na má memória das pessoas, e a mídia dá uma ajudazinha com sua programação estridente e alienante, com os axés, os rebolados, os tchans, transformando todos os sentidos da nação em puro espetáculo de pão e circo. Os aposentados não recebem o que têm direito, porque o administrador não teve capacidade de gerar os recursos necessários, mas este não é demitido nem renuncia. O que seria uma dívida reconhecida vira direito negado, e fica tudo como antes. Entretanto, juizes, congressistas, administradores públicos, estabelecem o próprio salário e empregam seus parentes confundindo ética com ótica. Legislativos discutem falsamente uma diferença de poucos reais sem questionar quantos salários recebem por ano: 15? 20? As informações são quase sempre angulosas.
Mas queremos uma polícia apta e honesta e nos admiramos quando alguém, por razões inexpressivas para a nação, abre o bico e conta o que já todos sabem, como se as palavras criassem a realidade, que não existe enquanto não for verbalizada. Tem até mesmo cronistas de boa vontade que pinçam na vasta realidade brasileira casos de abnegados idealistas, ou meros sobreviventes, casos ditos exemplares, que obviamente não ameaçam e não serão soluções para o país, porque não passam pela porta da frente, não entram na lógica principal do sistema.
Melhor voltarmos à infância e aos contos da carochinha

Publicado no JB em 26/07/00



O “DAY AFTER” DA SOCIEDADE TERCIÁRIA

Um amigo de afirmou outro dia que se sentia no contrapé da história. Contrapé, como se sabe, é aquele estado em que o goleiro se atira na direção da bola mas esta se desvia no caminho e muda de direção, deixando-o no vazio. É também como na famosa e premiada fotografia do Sr. Jânio Quadros, em que seus pés se entrecruzam, como se perdidos de rumo. Diz-se igualmente que teria sucedido com os dinossauros, quando estes desapareceram. Tal era a gravidade da situação do meu amigo. Havia percorrido um longo trajeto profissional, assumindo responsabilidades cumulativas em algumas poucas empresas, entre privadas e públicas, mais destas que daquelas, ocupando cargos qualificados e preparando-se para uma justa retirada no fim da estrada.
Tendo se preparado para alcançar e manter bons empregos, seguros e bem remunerados, só trocando algum por outro mais interessante, e se possível acumulando seus benefícios, chegando finalmente à gratificante aposentadoria, de repente se viu estranho diante de um cenário que não estava previsto no dia anterior. Despertou em nova e estonteante realidade. Sua vida de assalariado rapidamente perdeu certeza. Os vizinhos, pessoas conhecidas e alguns amigos, eram todos “microempresários”, “homens/mulheres de negócios”, “empreendedores”, “intermediários”, “informais”, qualquer coisa menos empregados. E salário já não parecia remunerar melhor que outras formas de trabalho.
Meu amigo me faz pensar. O emprego tradicional encurtou, uma nova lógica de organização do trabalho ensaia entrar em cena. Por enquanto, sem as garantias necessárias, e então aparenta visita inesperada. Mas não é convidada de pedra. Tudo está mudando e, antes que seja nunca, será preciso que se estabeleçam novos princípios gerais, a partir dos quais se possa ir reordenando todas as coisas no universo laboral. Porque nenhuma sociedade pode conviver com o caos mais do que algumas poucas horas.
Trabalho flexível, jornada reduzida, trabalhos temporários, subcontratação, cooperativas de trabalho, tudo é possível desde que se acorde uma nova cultura nas relações de trabalho, assegurando respeito mútuo e valores sociais integrativos.
Na verdade, as perdas no plano do emprego nominal poderiam ser recuparedas no processo de estabilidade horizontal. Ou seja, que se configure um contexto econômico associado a garantias sociais de modo a viabilizar que um trabalhador possa percorrer várias modalidades de trabalho e de ócio forçado, sem comprometer a continuidade da vida familiar. Porque os benefícios e salários sociais estariam vinculados a planos coletivos globais e não mais a vínculos individuais de emprego. Uma sociedade do trabalho onde as elites assumem compromisso com o futuro do país e o Estado um papel mais ativo na criação de terreno fértil para relações mais equilibradas e sustentadas na justiça social.
Mas não é este o cenário natural que se aproxima ( e que espanta meu amigo). O que se agrava, se não se adota correção de rumo, é a incidência da economia fictícia, que não depende de produtores ou consumidores, que festeja o negócio duvidoso, o risco delituoso e o rendimento fácil, e não mede conseqüências sociais.
O que meu amigo vê é um mundo na fronteira de dois mundos: o do “day after”, ou a aurora de uma nova sociedade terciária. Quem sabe não se pode construir uma sociedade mais justa e com (um novo tipo de) trabalho para todos!
Meu amigo, enquanto isto, tem razão de estar assustado e sentir-se jurássico.

Publicado no JB em 24/07/97


O MUNDO MUDOU


O mundo mudou, e mudou muito rapidamente. Quem tem mais de 50 anos deve estar sentindo um abismo debaixo dos pés. Todos os valores, todas as saídas em que acreditava já não valem ou não funcionam. A classe média que lutava e sonhava para que seus filhos se qualificassem para alcançar bons empregos vê esse conceito desabar. Nada do que foi será, como diz a canção.
A idéia de criar ou formar o empreendedor, que foi polêmica dos anos 60 é a ilusória convicção dos dias atuais, não por programação ou política econômica, mas em conseqüência do progressivo rompimento da sociedade organizada nos moldes da produção “fordista”.
A organização sindical viu desaparecer, como mágica, o seu antagonista imediato. As fronteiras referenciais do mundo do trabalho se distanciam com a globalização, e as explicações e responsabilidades se perdem no horizonte. Não há por perto com quem contender. Isso explica um pouco o fenômeno do descolamento entre os problemas da realidade e o prestígio intocado dos dirigentes.
Não é um fenômeno brasileiro, é de toda a sociedade ocidental e ocidentalizada, é um desdobramento da sociedade capitalista em sua etapa pós-industrial. Mas tem suas particularidades em cada país.
A contrapartida no contexto social é a divisão entre os incluídos, os remediados e os novos excluídos. Os primeiros fazem parte da nova sociedade emergente. São, quando bem-sucedidos, personagens do mundo dos negócios oficiais e marginais, autênticos malabaristas, que estão presentemente apostando nos espaços abertos pela transformação rápida do tecido econômico. Os remediados conformam um grupo bastante heterogêneo entre os que procuram entrar no primeiro grupo com resultados moderados e os da antiga classe média que estão conseguindo se sustentar no novo cenário. E estão os excluídos, de todo gênero, entre mal aposentados, desempregados e subempregados crônicos, dependentes, etc.
Se juntarmos a estes os excluídos crônicos, que nunca pertenceram à sociedade do bem-estar, teremos um pouco como nos filmes de ficção social-futuristas, um cruel abismo entre as classes.
Fica difícil compreender o confuso momento atual, com a “sociedade alka-seltzer”, efervescente, dos shoppings, estádios e feiras. Do turismo explosivo transformando os aeroportos em rodoviárias. É a fase de reordenamento econômico, dentro de um processo que deverá talvez gerar um novo modo de produção.
Enquanto isto vai distanciando-se a relação entre ganhos salariais e ganhos do capital. Os salários, com a exceção de um reduzido grupo de altos executivos, artistas e astros do esporte, vão-se depreciando em relação ao capital, criando uma distância insólita entre esses dois componentes do mundo do trabalho. Rompe-se uma solidariedade social que foi a base do processo civilizatório do Ocidente desde a Primeira Revolução Industrial. Fica o mundo mergulhado em duas fantasias, ambas alimentadas pelo individualismo desarticulado: a aventura de buscar o próprio negócio –de toda sorte—com os elevados riscos que isso implica, e a ilusão da suficiência educativa.
A sociedade se restringe, assim, a reduzidas possibilidades.
Faltaria a necessária cumplicidade política das elites, sem a qual restam somente as revoluções. Mas estas, como se sabe, estão já fora de moda e distantes de enredo. Encontrariam as elites razão para recriar um pacto social como saída para uma concepção construtiva do futuro? Mas aí já navegamos em pura utopia.

Inédito


A DIMENSÃO JUVENIL

Houve tempo em que o termo juventude só nos conduzia a sensações e emoções virtuosas. Juventude sugeria vigor, energia, esperança de futuro. Doce era o pássaro da juventude. Mas estamos vivendo uma fase da história em que o jovem está visto como problema social, ameaça aos bons costumes e à tranqüilidade da família. O jovem está sendo associado a drogas e marginalidade. Nada mais errado, por outro lado, que permitir essa generalização contagiosa, porque distorce a análise e a compreensão, e em conseqüência, a proposta de objetivos e programas. O jovem é, na verdade, e cada vez mais, um participante necessário do esforço econômico familiar.
Entre 1981 e 1990, no Brasil, a faixa de 14 a 19 anos de idade mantém uma taxa de atividade de cerca de 50%, o que é bastante significativo. São 15 milhões de jovens entre 14 e 19 anos no país que, entretanto, não desfrutam de um mercado de trabalho estável e acessível. Dos que conformam a população ativa, ou seja, que estão trabalhando ou buscando emprego, o índice de ocupação real é pequeno: 12% entre 10 e 14 anos; 6,3% entre 15 e 17; 13% entre 18 e 24 anos. Retrata que um enorme contingente está no subemprego ou no desemprego.
Importa considerar que o suporte familiar, com o custo de vida se elevando, exige a presença de vários de seus membros, ao contrário da tradição de outros tempos onde o chefe de família se bastava. O sistema produtivo vem recebendo oferta ampliada de trabalhadores, produzindo-se uma pressão forte sobre o mercado de trabalho, que se torna seletivo e credencialista.
Nessa estrutura, alguns segmentos da população saem prejudicados, tanto em relação às oportunidades quanto em relação à retribuição. As mulheres e os jovens estão entre os mais penalizados. As pesquisas indicam que os jovens têm maior dificuldade de ingresso no mercado de trabalho, onde um dos requerimentos mais presentes é a chamada experiência anterior, que por definição o jovem não dispõe.
Complica-se a questão com a heterogeneidade desse segmento e o desafio da eqüidade se impõe inequivocamente. Não se pode seguir reproduzindo a injustiça e a exclusão. Não se pode congelar a estratificação, mantendo o dualismo escolar e laboral, em que famílias ricas fazem estudos regulares, a classe média defende empregos que se precarizam, e os pobres convivem com a marginalidade e a informalidade. E, à medida que os processos econômicos não asseguram suficiente crescimento, há um efeito de precarização em cadeia, a partir das classes médias, que aumenta as dificuldades e a marginalização. Os valores persistentes na sociedade não favorecem a adoção de medidas compensatórias e propiciadoras de uma reconversão virtuosa. Os modelos econômicos de ajuste à globalização e à ampliação do comércio internacional não têm favorecido a integração social, e esse fato agrava as conseqüências para a inserção juvenil no emprego e na sociedade.
Por outro lado, os poucos e insuficientes programas sociais continuam pecando pelo caráter dualista em relação às áreas econômicas, pela sua natureza regressiva, favorecendo que tem menos necessidades, e também pelas limitações operativas. Naturalmente, a questão juvenil se acumula com o problema dos adultos, que também se afogam em um desemprego crônico e com a extensão da pobreza, porque os jovens de famílias pobres terão necessariamente menor escolaridade e maior desemprego.
A sociedade tende a ser conformista, reconhecendo que o jovem “é assim mesmo”. E os setores políticos também não gostam de correr riscos com os jovens, que são “alienados” para alguns ou “inconfiáveis” para outros. A tudo isto se acrescenta a notável transformação que ocorre no mundo do emprego, alterando completamente o padrão da demanda e o perfil dos trabalhadores empregáveis/requeridos. Contudo, não devemos ser pessimistas. O jovem tem algumas vantagens comparativas que podem valer, no futuro posições e oportunidades maiores. Por exemplo, o jovem se apresenta ao mercado com maior escolaridade que gerações passadas, embora os requerimentos tenham também se elevado, compensando em parte esse valor agregado. O conhecimento geral do jovem é também mais atualizado, graças às comunicações que se multiplicaram. Os jovens também apresentam menor rigidez no sistema produtivo e portanto podem ajustar-se melhor às novas formas de trabalho. E, finalmente, o jovem domina com mais facilidade as novas tecnologias, em particular a informática.
Existe, entretanto, a necessidade de desenvolver políticas ativas que promovam melhor inserção do jovem na sociedade e no emprego, de modo a viabilizar um futuro alentador para o país. Se não se cuida de preparar o jovem para esse novo cenário, as possibilidades de salto qualitativo do país para aproximar-se das nações pós-industriais estarão sacrificadas.
Há quatro estratégias que poderão compor um programa mínimo e que podem ser assim resumidas:
-facilitar o acesso juvenil ao sistema regular de educação, introduzindo flexibilidade e objetivação curriculares;
-aumentar a empregabilidade do jovem mediante educação profissional transformadora;
-desenvolver, com mesmo objetivo, sua familiaridade com o trabalho e a empresa;
-preparar especialistas em atenção à juventude e no trato dos problemas próprios desse segmento.

Publicado no JB em 10/10/97


EDUCAÇÃO GERA EMPREGO

Quase tudo já se sabe sobre emprego e desemprego. O assunto virou moeda corrente. Como aplicação financeira no tempo da inflação desenfreada. Quando um assunto passa dos corredores das autarquias, vence o botequim e entra em casa porta adentro, ganha a classificação de tema nacional. Realmente os jornais têm-se repetido fartamente. Nada de novo pode mais surpreender, o problema está qualificado, o que não significa que esteja resolvido. Está identificado e sabemos todos dele. E a que leva tudo isto? A algumas conclusões nunca definitivas. O caminho mais seguro para a geração de empregos é o crescimento econômico associado a políticas ativas e educação apropriada. Desta já denunciava Althusser nos anos 60 ou 70, ao analisar os “aparelhos ideológicos do Estado,” os impedimentos colocados pelo próprio sistema de poder dominante. Sim, porque uma educação tanto pode ser conservadora, como costuma ser, ou transformadora e até mesmo revolucionária. Que seja pelo menos transformadora o que já é difícil, mas necessário na equação do emprego numa era de mudanças. A educação é um instrumento irrenunciável da democracia. A democracia, por sua vez, é um conceito integral, que não se esgota no seu lado político, como costumamos entender, mas exige consideração das esferas social e econômica para alcançar realmente sua plenitude. O emprego de qualidade, em sentido amplo, não apenas do emprego dependente, é requisito essencial para viabilizar a distribuição de renda e fechar o circuito produtor de riquezas. Educação e emprego, quando associados a uma estratégia de integração social, estão inextricavelmente ligados a melhor saúde e melhor bem-estar da população. E educação gera emprego, apesar das afirmações respeitáveis ---mas sem utopia --- em contrário. Não é a lógica principal do emprego e não se trata de legitimar falsas ilusões substitutivas de responsabilidades do Estado. Está claro que nenhum fator isolado é suficiente, a própria educação precisa de complementos. E não se está falando de qualquer educação. Vamos supor que em uma região do Nordeste a população está deprimida e a atividade econômica é mínima, de subsistência. Digamos que o governo decidisse montar uma escola de modelo transformador, que vai entregar aos habitantes conhecimentos sobre como diagnosticar a própria realidade, como conjugar esforços, como desenvolver atividades, como aprender a aprender, como entender o meio ambiente, como comercializar, como ter acesso aos poderes institucionais do país, e assim por diante. A simples aquisição de conhecimentos e valores, transmitidos em processo educativo, pode gerar na população a capacidade e a vontade política de mobilização e definição de caminhos, conduzindo ao desenvolvimento de recursos de alcance médio, que em algum momento se chamou de “tecnologias apropriadas,” produzindo crescimento de atividade e emprego.
Em nível micro acontece todo dia, quando um técnico se forma e monta um serviço de assistência, ou quando um empregado antigo decide otimizar sua experiência na empresa e com um pequeno impulso educativo, usando seus conhecimentos como capital inicial, monta seu próprio negócio. Vamos admitir que por um fenômeno inesperado e coletivo, boa parte da população comece a acreditar no associativismo, no círculo virtuoso de produzir riquezas, e aceite a adoção de mecanismos mais redistributivos, capazes de multiplicar efeitos, e um sopro educativo lhe ofereça os instrumentos necessários para tocar o barco. Este seria um processo criativo e gerador de atividades, que incorporam por natureza o trabalho humano. As nações criaram muitas gorduras que as tornam pesadas e deslocadas do eixo condutor de suas virtudes. É preciso reinventar o social e tomá-lo como base de reconstrução do país e da sociedade.

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JUVENTUDE POLISSATURADA

Tempos atrás o Banco Mundial decretou que os países em desenvolvimento (esse eufemismo!) deveriam dar prioridade ao ensino fundamental. E o Banco quando fala se arma com os recursos que tem: dinheiro. Suas idéias são assim mais convincentes. E foi o caso, os países sairam a bancar o ensino primário, com estratégias mais ou menos semelhantes, porque também seguindo a mesma receita.
Nada contra, parece mesmo muito democrático, só que, como quase sempre, como já alertava Prebish na CEPAL, as cópias dos países dependentes são mais realistas que o rei. E dar a mão ao ensino fundamental representou muitas vezes sacrificar o superior, na concepção de que sendo reduto das elites, não precisava mesmo ser massivo. A massificação ficaria por conta do particular, funcionando no nível realista do mercado, em termos de quantidade e qualidade.
E o ensino médio, no meio, pagaria outro preço, o dos filhos que se apertam entre o primogênito e o benjamim, que aglutinam toda a atenção familiar.
Em consequência, o ensino médio brasileiro vive sua contradição particular, como outono abismal ou meio caminho do paraíso. A recente LDB construiu uma árvore com três ramos, um estéril ao nivel técnico, outro estreito ao tecnológico e finalmente o sentido único ao paraíso.
Em outros tempos, no meu, o chamado secundário se dividia em três tendências ou vocações, o clássico, o normal e o científico, o que permitia uma primeira aproximação com a escolha universitária. Hoje existe um desborde no ensino médio, onde o estudante, independentemente do destino, tem de passar por uma inacreditável maratona, estressante ou frustrante para a maioria, onde livros de mais de 500 páginas e apostilhas se revezam e se contam por quilos, onde o candidato a cineasta tem de estudar biologia na mesma dimensão do candidato a medicina e o engenheiro em perspectiva tem de disputar com o futuro historiador as razões pelas quais Nicolau II foi obrigado a promulgar o Manifesto de Outubro, transformando a Russia numa monarquia constitucional. Outro dia uma dona de casa foi derrotada pela biologia que tentava passar ao filho, nesses esforços familiares tragicômicos. Afinal, os filamentos polipeptídicos devem enrolar-se em forma de hélices e na eucromatina os fios de cromatina estão desenrolados.
Por que não realizar no ensino médio uma primeira triagem, facilitando o ajustamento do jovem a sua vocação ou pelo menos ao que ele pensa que o toca mais fundo? Se ele se equivoca, paciência, paga um pequeno preço de retorno às bases, mas a garganta do sistema fica mais fluida, mais focalizada.
Como os vestibulares se espalharam por quase todo o ano, a maratona juvenil tornou-se permanente, e as tensões familiares seguiram a mesma direção. São comuns as alterações de sono e apetite, as reações inesperadas de comportamento e mesmo a depressão, crises que têm aumentado a clientela juvenil nos consultórios médicos e da psicologia, que agradecem.
Enquanto isto, as férias escolares foram reduzidas, sem nenhum benefício, os professores contiuam fazendo atletismo escolar, o volume de aulas extras criou um novo e florescente mercado e os pais seguem enlouquecidos pelas pressões e pelos preços.
Fala-se muito de novos tempos e novas demandas ao sistema educacional. Um ensino por competências pretende refletir as práticas emergentes de organização flexível da produção e do trabalho. As escolas são cobradas para introdução de programas que exigem mais reflexão, criatividade, iniciativa e autonomia dos alunos, mas os professores, que não foram educados nessa linha, não sabem como fazer e não recebem salários estimulantes para buscar sua própria atualização. As escolas ficam entre cumprir um programa do tamanho das muralhas da China e não educar ninguém, ou reduzir por conta própria o programa e não cumprir a recomendação do MEC, com riscos para o vestibular.
Ou transformamos nosso ensino em realidade para as diferentes camadas juvenis, ou seguiremos fazendo mudanças para ficar tudo como já está. A boa educação não é a panacéia, mas se constitui ainda no mais forte instrumento de promoção social teoricamente disponível.

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PERGUNTAS NA VOLTA ÀS AULAS

Um novo ano começa e parece que já vimos esse filme muitas vezes. Os jovens pais se espantam, os antigos se conformam e os avós apenas se lembram como era verde nosso vale. A escola faz um esforço meritório de ajustar-se à nova era, mas não mostra competência, talvez pelo desafio que representa conciliar teses contraditórias como a acelerada modernização material dos tempos atuais e a necessidade de preservar a dignidade e o espírito, e promover ainda a justiça social. Enquanto isso, assistimos à repetição do pragmatismo burocrático. Algumas perguntas nos inquietam. serão (im)pertinentes?
1-Por que a escola ignora as condições de temperatura e pressão? As aulas teimam em começar em pleno verão de 40 graus. E ainda perto da grande festa, no país do carnaval. Cortam as férias familiares, encurtam a economia de verão e transtornam a vida das pessoas. O que ganham em troca? Alguns dias de aula, vividos com desamor pelos alunos e professores. Parece que uma decisão burocrática, cheia de boas intenções, estabelece um número mínimo de aulas por ano, faltaria criatividade para superá-la. Enquanto isso, mostram-se tristes as condições de aprendizagem, pois são raras as escolas com recursos funcionais contra o calor. A escola pública explica que precisa funcionar para manter a alimentação das crianças. Mais apropriado fazer isto em colônias de férias comunitárias.
2-Por que a escola teima em acordar mais cedo? Os militares acreditam que despertar cedo é importante para disciplinar a mente. Outros festejam as cores da manhã. Existem ainda os que só vêem a manhã porque estão chegando da madrugada. As razões escolares de começar tão cedo parecem ser mais pragmáticas: os pais necessitam desembaraçar-se dos filhos em tempo de ir trabalhar e todos, pais e burocratas, querem um trânsito menos pesado pela manhã. Deve ser também, no caso da escola pública, para acomodar tantos turnos. O processo educacional que se ajuste ao coro das galinhas.
3-Por que crianças e jovens têm de carregar tanto peso? Em plena era da informática os livros escolares estão cada vez mais volumosos e pesados, talvez até como forma de justificar os preços. E o aluno leva para a escola, desde o primeiro dia, os capítulos que serão dados (ou não) lá pelo fim de ano. As clínicas ortopédicas festejam e tem criança usando carrinho de mão. A escola pública, por razões de controle da posse dos livros, ainda faz o esforço de guardá-los, mas está claro que essa fórmula tem suas limitações, afinal a gente gosta de anotar nos próprios livros e fazer deles uso pessoal.
5-Por que as escolas têm cada vez menos campus? Toda vez que se assiste um filme norte-americano revela-se o contraste dos espaços escolares daquele país com nossa realidade tão mesquinha com as escolas. Aprendemos com a Antropologia que os espaços são componentes integrais do processo vital. Menos nas escolas de classe média. E nunca ficaram claras as razões do combate sem tréguas aos CIEPS. Por falta de espaço a educação eliminou o preparo físico. Talvez seja por isso que nosso sistema de saúde ande tão sobrecarregado. Existe, é verdade, a juventude “pit-bull” que tenta contrariar a tese de “mens sana in corpore sano”, mas não se pode generalizar, os jovens gostam e precisam cuidar do corpo, até mesmo para sustentar o espírito.
6-Por que continuam diferentes as escolas pública e de classe média? Parece que está de pé a tese de que o empobrecimento da classe média teria a vantagem de levar seus filhos para a escola pública, que só assim se fortaleceria e se tornaria eficaz: o tal nivelamento por baixo. A imprensa chegou a noticiar casos de transferência, mas nada de uma nova realidade, por enquanto. E não parece correto basear nessa premissa a justiça social.
Enquanto as escolas públicas adotam currículos formativos, as particulares vivem o dilema de conseguir passar todo o imenso programa, com resultados limitados ou na base da tortura, contra a alternativa de dar apenas parte do programa e não saber se acertou na escolha. Currículos dinossauros são da prática escolar obrigatória, arbitrados pelo vestibular, naturalmente.
7-Por que o governo acha que faz boa administração escolar? Todos os ministros recentes foram bons ministros, que fizeram esse ou aquele bom programa. Entretanto, o país requer muito mais que isso. Na educação precisa-se de grandes educadores, capazes de liderar um verdadeiro terremoto nacional, que faça balançar as estruturas viciadas da educação e provoque de uma vez a transformação radical das condições, crenças, expectativas e práticas educativas do país.
8-Por que o governo anunciou que abdicava da empresa estatal para cuidar melhor de suas tarefas naturais e adota política privatizante na educação? Na verdade, a escola pública tem de ser melhor que a privada. Não pode? Pode, não é assim na educação superior, que é mais complexa? Os bons resultados do Pedro II e dos Cefets também demonstram essa tese. E os Cieps precisam ser reavaliados.
9-Por que não se dissolve o Conselho Nacional de Educação e se cria um Conselho Popular de Educação? Neste, estariam mais representadas as forças sociais, menos comprometidas com a pura escola privada. Nada contra esta, mas tem de ser uma opção como as estradas européias, que você adota se quiser, não obrigatoriamente, podendo eleger as vicinais. E ainda poderia ser uma projeção para o alto dos conselhos comunidade-escola, recentes e de boas perspectivas. E os professores teriam certamente melhores chances de valorização.
10-Por que as elites já têm seus filhos fora do país? É certo, a educação oficial nunca foi destinada às elites, desde a antiguidade grega ou china. As elites sempre estiveram acima das leis e portanto das escolas oficiais, sempre tiveram seus próprios códigos e sempre se encarregaram do próprio treinamento. Mas é sintomático que hoje já estejam fora do país.
Enfim, são apenas algumas perguntas, e nem sei se pertinentes.

Publicada no JB em 27/02/01



A QUESTÃO DA QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL

A Formação Profissional já acumula mais de 50 anos no Brasil. Em sua forma mais tradicional ela se desenvolveu através do que se conhece como “Sistema S”. A partir dos anos 80 começa uma grande transformação na organização da produção e do trabalho. A nova tecnologia produz uma verdadeira revolução nos meios de produção, as empresas levam um choque em suas estratégias de competitividade. Os mercados cativos se rompem e a sobrevivência dos empreendimentos econômicos passa a depender cada vez mais do alcance de elevadas taxas de produtividade. Isto é buscado através do enxugamento dos quadros internos de pessoal, da transferência de atividades secundárias para firmas subsidiárias e de muita inversão em tecnologia e recursos humanos. O trabalhador que permanece na empresa muda completamente seu perfil. Exigem-se habilidades e competências que superam o plano das operações mais ou menos repetitivas para assumir dimensões culturais e intelectuais. O novo trabalhador deve possuir autonomia, iniciativa, criatividade, capacidade de trabalho em grupo, facilidade de compreensão dos códigos da modernidade e de comunicação social. Deve apresentar uma grande identidade com a missão e o credo da empresa
Por outro lado, as atividades industriais reduzem significativamente sua demanda de pessoal, tornando-se altamente tecnificadas. O Setor de Serviços passa a assumir a difícil tarefa de gerar empregos. E empregos de outra natureza, o que significa barreira para os excluídos do setor secundário.
Tanto a descentralização das grandes empresas quanto a explosão do Setor de Serviços levaram à profusão de micros e pequenas empresas, sobretudo no chamado setor informal. O desemprego massivo, a chegada de novos contingentes de jovens ao mercado de trabalho, a necessidade familiar de geração de renda, muitos estímulos conduzem os indivíduos a buscar novas iniciativas, novas fontes de sustento. A microempresa tem sido apontada como saída para esse quadro da realidade. Entretanto não é nada fácil tornar-se um empreendedor. Além da qualificação, deve mostrar talento para os negócios, precisa de acesso a facilidades de crédito e da assistência de organizações especializadas. A qualificação é essencial, indispensável e pode aumentar as chances de dar certo. Um dos grandes obstáculos para o sucesso dos profissionais autônomos e micros empresários costuma estar na baixa escolaridade e falta de qualificação dos mesmos. Tanto os trabalhadores que se mantêm nas empresas, quanto o trabalhador que terá de buscar alternativas no mercado ou no setor informal das microempresas, dependerão fundamentalmente de qualificação apropriada.
A Formação Profissional é um dos pilares de sustentação do emprego e das condições de trabalho. A Convenção 142 de 1975 da OIT sobre Recursos Humanos e a Recomendação 150 sobre a mesma matéria, definem como objetivo descobrir e desenvolver as aptidões humanas para a vida ativa, produtiva e satisfatória. Em união com diferentes formas de educação deve melhorar as aptidões individuais para compreender individual ou coletivamente o relativo às condições de trabalho e ao meio social, e influir sobre eles.
Propõem que se promova o espírito criador, o dinamismo e a iniciativa com vistas a manter e acentuar sua eficácia no trabalho.
As Normas falam também na “formação para funções de gestão, supervisão e trabalho por conta própria”, acentuando:
Espírito de iniciativa;
Compreensão dos aspectos econômicos e sociais da adoção de decisões;
Capacidade de avaliar riscos e de aceitá-los; etc.

Mas dependerão também da existência de um terreno econômico fertilizado. A qualificação amplia, ajusta, focaliza. Mas são as facilidades que a engrenagem econômica possa proporcionar que em última instância irão viabilizar o empreendimento ou a criação de um novo posto de trabalho. No campo do emprego são necessárias duas vias, a da oferta preparada e a da demanda qualificada.








AS NOÇÕES DE RISCO

A noção de risco precisa ser repensada. Historicamente, o risco faz parte da livre iniciativa do capital e corresponde à contrapartida do lucro. Boa parte da mais-valia se justifica no sistema capitalista pela necessidade de remunerar o risco. Ocorre que na lei da selva, própria das benesses outorgadas ao capital como dono da casa, o empreendedor busca por todos os meios reduzir ou mesmo anular os riscos de seu investimento. Há pouco se pôde ver, na prática, o resultado de uma dessas benesses obtida no processo de privatização pelas grandes empresas do setor elétrico. As dificuldades sofridas com as perdas de capacidade energética e em conseqüência com a redução do consumo, foram abonadas pelo governo e portanto pela sociedade.Aquela fórmula já repetitiva e cansada, mas não menos exemplar de privatizar os lucros e socializar os prejuízos.
Agora se fala de introduzir o risco na vida laboral. “O risco vai se tornar uma necessidade diária enfrentada pelas massas, imposto em função da instabilidade das organizações flexíveis” (Sennett op.cit. p.94) Como se irá remunerar o risco do trabalhador?

Se por um lado a rotina de trabalho era apontada como indutora de docilidade e resignação, no condenado modelo fordista, por outro lado ela estava associada a certa estabilidade de vida para o trabalhador. Aspirava-se, e a educação trabalhava com essa perspectiva, por uma carreira, mesmo horizontal, que cobriria grande parte da vida produtiva dos indivíduos. Alguns pensadores até consideram que a rotina não é de todo uma coisa ruim. “Decompor o trabalho, mas compor uma vida”. (Sennett op.cit. p.49) O trabalho repetido poderia ser até mesmo criativo, é quando se domina uma tarefa que se coloca a possibilidade de a melhorar.
Giddens alerta para a irracionalidade de uma vida sem condicionamentos e acrescenta que os hábitos que se domina são os que se oferecem para testar alternativas. (Sennett op.cit. p.50).

Alguns autores destacam o fim das ilusões sobre a possibilidade de mudanças revolucionárias. A revolução teria sido trocada pelos benefícios de uma participação mais substantiva no espaço público e na distribuição da riqueza proporcionada pela - esta, sim - revolução tecnológica. A ascensão da social-democracia seria a expressão mais autêntica dessa nova postura dos ex-insurgentes. Citando Bernstein, Méda registra que a social-democracia, assumindo-se como uma ideologia não-marxista, adota método de ação que não pretende mais a reversão das instituições políticas e sociais do capitalismo, mas ao contrário, se propõe “uma longa marcha através das instituições”. (Méda op.cit. p.131) A autora completa mostrando alguns equívocos dessa posição, que teriam sido igualmente apontados por Marx: a) o reconhecimento das relações de trabalho como pauta para uma liberação futura do trabalho; b) crer poder tratar dos problemas de repartição da riqueza sem indagar sobre as respectivas posições no processo produtivo;

A sociedade constrói um terreno frutífero para a iniciativa privada, que precisa também de um trabalhador “livre”, em condições jurídicas e em regime de necessidade econômica, no ponto para demandar um lugar no mercado de trabalho. A empresa se coloca como um momento de conciliação desse jogo. Mas a empresa está se tornando “flexível”, leve e ligeira, em trânsito. A empresa antiga se pretendia uma comunidade de trabalho, a empresa flexível se define como “um arquipélago de atividades relacionadas”. (Sennett op. Cit. p.22)




VIOLÊNCIA SISTÊMICA

As cadeias e os centros médicos estão lotados. O sistema de previdência não dá conta do serviço. Engana-se quem pensa que são problemas isolados. O país vive uma inequívoca crise sistêmica, em que as perdas e deficiências, de um lado, vão onerando o desempenho, em outros lados. Comecemos por saúde e educação. Um povo bem educado, desde o pré-natal, passando pelo jardim de infância e educação de base, vai saber cuidar melhor da saúde, vai preservar o ambiente, na certeza de que se estará beneficiando em saúde e prazeres, vai respirar melhor, vai ter menos contágios etc. Tendo melhor saúde vai render mais na escola, vai aprender mais fácil e não vai faltar às aulas por resfriados e malária. Vai custar menos também para o estado e para a família, porque não vai gastar tanto em remédios e em reforços escolares e repetências.
Se o estado poupa em gastos marginais, vai poder melhorar a própria qualidade da escola, melhores equipamentos e salários. Mais educados e menos enfermos, os cidadãos vão ter melhor desempenho no trabalho e vão elevar a produtividade das empresas, que por sua vez vai possibilitar aumentos salariais e investimento em ampliação da empresa, de novo puxando o emprego. Mais empregos geram mais capacidade de consumo, mais estímulos à produção, maior arrecadação de impostos sem sua elevação. Menos enfermos e mais saúde, as pessoas desoneram os serviços e os planos de saúde não terão argumentos para elevar preços. Cidadãos felizes se mantêm em atividade e não se tornam inativos precipitadamente, trazendo mais alívio aos sistemas previdenciários. Se as pessoas são mais educadas, podem se informar melhor e compreender melhor a complexidade da vida moderna, e votarão melhor, e cobrarão dos seus representantes o respeito às promessas. Se a sociedade enxerga melhor vai exigir transparência dos serviços e dos gastos, e haverá maior produtividade do gasto público. Com mais recursos e legitimidade, o serviço público poderá oferecer melhor educação e saúde. E voltamos ao começo. Mas não adianta fazer remendos ou atacar uma ilha no oceano. Os administradores da coisa pública não têm mostrado, historicamente, vocação para estadistas, pessoas que olham o interesse da sociedade e projetam obras e serviços que passam dos estreitos limites de seus mandatos.
Os sistemas são criações intelectuais para facilitar a compreensão e explicação da realidade. Mas seus efeitos existem independentemente de nossa capacidade de apropriá-los com nossos modelos. Um país virtuoso teria maiores consensos. Seria transparente para seu povo. Transparência exigiria explicar como se multiplicou a dívida, como se processou a privatização, como se mantém a impunidade, como, enfim, se concentrou tanto a renda. E aí começam as dificuldades, e voltamos ao começo, sempre voltamos ao começo e sempre apostamos no futuro desligando do presente. Um dia teremos de começar de fato, e não importa por onde, desde que o envolvimento seja como a crise, sistêmico.

Texto Inédito



O EFEITO PERVERSO DO TRABALHO INFANTIL

O sonho de toda família é ver seus filhos na escola, galgando os degraus mais elevados que sua estratificação social considera desejáveis e possíveis. Entretanto 100 milhões de crianças estão trabalhando, por todas as partes do planeta, inclusive nos países industrializados. Como aponta a OIT. Mas o problema é mais grave entre os países em desenvolvimento.
A primeira causa do trabalho infantil é, como todos sabem, a pobreza, a necessidade de complementar a cesta básica familiar. E a realidade por ironia, favorece certos tipos de trabalho nos quais a criança se adapta relativamente melhor que o adulto. A família, então, encontra razões suficientes para sacrificar a escola dos seus filhos.
Nesse sentido, a “bolsa criança-cidadã”, que o governo vem oferecendo, é um instrumento fundamental,com efeitos imediatos, mas sobretudo para abrir caminho para um programa de renda familiar.
A outra causa situa-se na impropriedade do sistema escolar, que mais expulsa que atrai as crianças. E cada vez mais as atividades de complementação curricular se mostram determinantes do sucesso escolar. A merenda, por exemplo, constitui um reforço imprescindível, embora não suficiente para superar as carências familiares.
Pesa também um problema cultural: muitas famílias acreditam que a melhor escola é a própria vida e o trabalho. E muitas autoridades, de diferentes áreas do conhecimento e da administração, estão convencidas de que o trabalho é um benefício para a criança carente, “pois a retira das ruas e da marginalidade”. Um bom número de ONGs se dedica a criar um trabalho ou mudar a natureza do trabalho das crianças. Estão convencidas de que é a “solução possível, ou o menor dos males”.
Entretanto, se pensamos na obrigação do Estado e nos desígnios de consciência pela igualdade de oportunidades para o pobre e o rico, diminuindo a grande brecha social produzida no país por décadas de efeitos perversos da distribuição de renda, a manutenção de uma criança no trabalho representa a perpetuação das diferenças.
Não é difícil justificar e é muito atraente demonstrar que uma criança trabalhando pode ser a solução imediata contra a fome e o crime. Mas a criança não estará competindo em igualdade de condições com os demais na construção de seu futuro. Sempre existem os exemplos de pessoas bem sucedidas na vida, que trabalharam desde a infância e que tratam de valorizar essa condição. Mas são justamente as exceções, que devem ser festejadas com todos os méritos, mas não podem justificar a solução tradicional. Três milhões de crianças trabalham, de alguma forma, no país e a maioria sacrifica sua participação escolar, como provam as pesquisas. Muitas estão, inclusive, trabalhando em situações de risco.
Insólitos são os caminhos do trabalho infantil. Dificilmente se poderia detectar no produto saído da mais moderna indústria, que lá no início do processo, lá nas primeiras etapas da cadeia produtiva, pode estar um ato de exploração do trabalho infantil. Os grandes empresários têm portanto co-responsabilidade nesse drama e têm liderança e poder para pressionar e persuadir os segmentos subsidiários.
O governo brasileiro conseguiu superar a polêmica das pressões externas e assumiu a verdade dos números, uma decisão histórica que permite engajar importantes esferas oficiais e viabilizar uma cruzada nacional, que recém dá a partida. É muito importante o que acontece no Estado de Pernambuco. Não é a primeira vez que o Presidente da República põe o dedo nessa ferida nacional, mas até então o problema era embalado e trazido a palácio. Agora é ele que vai ao encontro do problema. Isso muda muita coisa. Aponta com determinação a vontade política do governo e valoriza uma estratégia integrada de intervenção social.
Contudo, a tarefa é longa e tem de ser persistente. É preciso dar prioridade aos setores de risco e intensificar as parcerias. É preciso igualmente articular diferentes instâncias de governo e superar diferenças partidárias. O gesto presidencial reforça muito este caminho.
A tarefa, então, é de todos, governo, empregadores e trabalhadores, ONGs, comunidades de base, idealistas e sobretudo da mídia, da comunicação social. O enfoque efetivo tem de associar levantamento de dados concretos, programas de conscientização social, aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fiscalização do trabalho, projetos de geração de emprego e renda e processo sustentado de escolarização.
O trabalho infantil em situações de risco não se justifica e fere a consciência social do país.
Publicado na Folha de São Paulo em 25/01/97



O PIOR DO TRABALHO INFANTIL

Toda criança ou adolescente tem o direito e deve poder cumprir plenamente seus estágios de desenvolvimento físico, mental e sócio-cultural. A comunidade internacional tem condenado as formas de exploração do trabalho infantil que implicam em drástica limitação no alcance desses benefícios. Os chamados países em desenvolvimento, onde as condições de trabalho já são comumente insatisfatórias e por vezes abusivas, sofrem particularmente a pressão dos países mais industrializados pelo estabelecimento de vínculos entre o comércio e as condições de trabalho, as polêmicas cláusulas sociais.
Os últimos alegam que os primeiros praticam condições perversas de trabalho, como forma de alcançar preços vantajosos no mercado internacional. Os países mais fracos se defendem, acusando tentativa de inibir legítimas vantagens comparativas resultantes das condições gerais próprias de suas realidades. Preferem a sanção positiva, a premiação do esforço de países que demonstrem ações efetivas contra a exploração infanto-juvenil.
Discussão e motivação à parte, razões humanitárias superiores, de justiça social, são suficientes para condenar qualquer limitação do direito das crianças.
O trabalho infantil é mais difundido do que se imagina e a cada momento se descobre mais um episódio desse drama universal. Felizmente existe hoje o outro lado, o daqueles que estão decididos e engajados no combate a qualquer situação de risco para crianças e adolescentes. A tarefa é descomunal e tem de assumir estratégias e instâncias bastante diferenciadas. No plano internacional surgem iniciativas alentadoras. A FIFA, multinacional do futebol, chegou a um acordo com o sindicalismo internacional sobre um conjunto de regras práticas na fabricação de produtos esportivos patrocinados por aquele órgão, com a finalidade de inibir a presença de mão-de-obra infantil. A União Européia concede redução de tarifas a muitos produtos importados, desde que os países demonstrem respeito aos direitos sindicais e abolição do trabalho infantil.
Os dois instrumentos jurídicos internacionais mais importantes que orientam esse assunto são a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificado praticamente por todos os países e que constitui o mais completo documento sobre o tema; e a Convenção 138 da OIT, de 1973, sobre a idade mínima de trabalho, ratificada recentemente pelo Brasil, que estabelece a idade limite de 15 anos, mas permite alguma flexibilidade em sua aplicação.
Diante da impossibilidade prática de eliminar o trabalho infantil de uma só vez, ou com um só gesto, que acabava justificando a falta de esforços de muitos países, a OIT aprovou no ano passado a Convenção 182 e a Recomendação 190 sobre “as piores formas”, não propriamente reconhecendo “formas melhores ou toleráveis” mas a necessidade de estabelecer prioridades na erradicação do trabalho infantil. São assim consideradas as formas de escravidão, a servidão por dívida, a prostituição, o trabalho em ocupações ou ambientes perigosos, e o trabalho na mais tenra idade, particularmente das meninas. E a norma nesses casos se estendeu a 18 anos, compreendendo também a população adolescente.
As estatísticas são falhas, em função das dificuldades naturais de localizar as crianças e adolescentes em condições de ilegalidade. Fala-se de cerca de 120 milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalhando, espalhadas por mais de 150 países no mundo. Mas estão principalmente na Ásia (61%) e na África (32%). Na América Latina encontram-se cerca de 16% delas.
Crianças e adolescentes que trabalham apresentam déficits de crescimento, se expõem a condições de risco, prejudicam o rendimento escolar e se submetem por vezes a situações ofensivas à moral. Muita gente, entretanto, acha que o trabalho infantil é útil para a criança e necessário para a família. E certamente não falta o “self made man” orgulhoso de sua carreira e do fato de haver trabalhado “desde criancinha”. Mas este não se dá conta de quantos ficaram pelo caminho, a maioria absoluta.
A pobreza está claramente associada com a exploração do trabalho infantil, mas há países pobres com mais e com menos envolvimento. Afirma-se que as crianças são mais ajustadas a certos tipos de trabalho, pelo seu tamanho, pelas mãos pequenas, pela agilidade, mas pesquisas demonstram que não é uma verdade incontestável ou definitiva. Onde trabalham crianças também trabalham adultos com igual rendimento. Parece mais que as crianças não conhecem e não exigem os seus direitos, são mais dóceis, aceitam menores salários, não reclamam das condições, o que torna mais covarde e cruel sua exploração.
Dado, entretanto, que contribuem em geral com cerca de 20 a 30 por cento do orçamento familiar, sua extração do processo produtivo tem de acompanhar-se de ganhos compensatórios. A contribuição infanto-juvenil é mais resistente nas formas de produção com margens de benefício reduzidas, de configuração familiar. São casos de trabalho domiciliar onde a produtividade é alcançada pelo envolvimento de toda a família.
Além da complementação do orçamento familiar, como nas bolsas-cidadania, é indispensável que à criança se dê uma escola apropriada à sua realidade e atividades complementares enriquecedoras de sua capacidade física, mental, emocional e sócio-cultural, e que ocupem o seu tempo integral cotidiano.
Educação é, afinal, o grande componente de um elenco de fatores necessários para assegurar a toda uma geração de crianças e adolescentes, o acesso aos direitos que a legislação e a consciência crítica da sociedade lhes apontam.

Publicado no JB em 17/10/00






O 18 BRUMÁRIO DE LULA DA SILVA

Como se sabe, Karl Marx narrou com clareza cristalina uma montagem política que se tornou exemplar, onde uma elite dominante descobre a necessidade de ceder alguma coisa para não perder muito mais. No caso, boa parte da burguesia francesa, de meados do Séc XIX, rompeu com suas convicções políticas e apoiou o golpe de estado de Luiz Napoleão, para assegurar seus benefícios materiais e sobretudo derrotar seus inimigos, em especial o proletariado.
Tempos atrás escrevi um artigo onde pretendia mostrar que a elite política brasileira, em vésperas de eleições presidenciais, sempre tirava da cartola um coelho, para manter o continuísmo do seu processo hegemônico. Foi assim com os marajás de Collor, o Plano Real de FHC e até a ameaça do caos, na sua reeleição. Eu me perguntava sobre o que viria desta vez. O tempo passava e não acontecia nada parecido, com o candidato oficial um pouco deixado à deriva.
Mais recentemente comentei com amigos que estava escrevendo um artigo sobre a assunção de Lula. Nele me dava conta que, afinal, havia, sim, um coelho na cartola e era o próprio presidente eleito. Eu chamava a isto, forçando a letra, o 18 Brumário de Lula da Silva, muito em sentido provocativo. Para minha surpresa, o pretenso texto se espalhou e já alcançava círculos mais distantes, quando resolvi intervir e colocar a coisa no devido lugar. Vamos lá.
O governo FHC esgotou seu fôlego, gastou seu crédito político e deixou no caminho algumas reformas básicas para o modelo projetado de país. Outro candidato de perfil semelhante não traria nenhuma vantagem, esse o problema de José Serra. Seria preciso uma novidade, algum governante com maior proximidade com as massas, que gostasse de cheiro de povo, ao contrário da frieza acadêmica de FHC, mas que fosse também um risco controlável. As mexidas do PT para o meio ajudaram. O “Lula Paz e Amor” pode não ter convencido totalmente as elites, mas se enquadrava no modelo de risco calculado do 18 Brumário, que se buscava. Pior para José Serra.
Não se pode descuidar de que os temores de ascensão do PT se deviam mais ao ufanismo da classe dominante, acostumada a ganhos arbitrários e exercício de poder absoluto, do que a real ameaça de mudança de sistema. O sindicalismo, berço do PT, é basicamente de cunho reformista. Embora o PT reúna grupos de tendências ideológicas diversas, predomina a ala moderada, a que pertencem Lula da Silva e José Dirceu. Gramsci já alertava sobre isto, que chamava “uma etapa da luta operária” que precisaria ser superada no tempo.
Lula presidente poderia fazer as reformas da previdência e da flexibilização trabalhista, ninguém melhor que ele, nas circunstâncias. E de sobra faria as reformas política e tributária, todas elas complementares da linha de “modernização conservadora do estado”, proposta por FHC. E estavam lá, na proposta política do então candidato.
Uma reforma previdenciária igualando todos os empregados do país em um mesmo modelo, com uma base mínima comum e uma complementação voluntária, que FHC tentou e não conseguiu, só poderia ser alcançada por alguém com o perfil e trajetória de Lula da Silva.
O processo de flexibilização do contrato de trabalho, já iniciado por FHC, junto com a revisão da organização sindical, teria mais chance com Lula da Silva conduzindo.
Não é difícil entender que o Governo FHC deixou muita gordura, por puro distanciamento intelectual. Cortar a gordura deixada por FHC já seria uma tarefa capaz de consagrar um novo governo, e tudo isto sem precisar tocar na mudança da lógica principal do sistema, ou seja, a relação capital x trabalho.

No programa de governo do PT, são dois os pontos que poderiam trazer uma mudança mais significativa para a sociedade brasileira:
1) a redução da dívida externa. “O Brasil precisa de cerca de um bilhão de dólares por semana para fechar suas contas”.
Sobre isto dizia o programa: “até que um novo rumo seja estabelecido para a economia teremos de administrar a herança da equivocada política cambial e de abertura desordenada dos anos 90”. Portanto, proposta gradualista: “uma lúcida e criteriosa transição para reduzir a vulnerabilidade externa”. Depois “uma nova política econômica irá reduzir gradualmente as taxas de juros e o estoque de títulos da dívida com vinculação cambial, liberando importantes recursos para os diversos programas”. Esses programas incluem a “crescente universalização da moradia própria, dos serviços urbanos essenciais (saneamento e transporte coletivo) e de direitos sociais básicos (saúde, educação, previdência e proteção do emprego); e combate à fome e à pobreza absoluta, com assistência social aos excluídos”. Pontos comuns de um capitalismo social.

2) a mudança de prioridade no investimento, para combater “a remuneração privilegiada do capital financeiro, em detrimento de políticas voltadas para o desenvolvimento e a remuneração adequada do capital produtivo”.... para que a poupança nacional aumente e seja orientada e estimulada, através de taxas de juros civilizadas, para o investimento produtivo e o crescimento”. Um ajuste, entretanto, ainda dentro do modelo.

Ter sido cooptado pela burguesia não compromete necessariamente o beneficiário, tudo dependendo do jogo político. Como foi dito, a jogada, se houve, implicava também riscos para os promotores. Por outro lado, as reformas pensadas não são obrigatoriamente ruins. A previdenciária, de modelo duplo (universal e complementar) para todos, se mostra mais democrática e, em termos contábeis, mais realista. E corresponde melhor a experiências internacionais.
A reforma trabalhista é a peça de maior resistência, mas Lula é, obviamente, mais confiável para os trabalhadores para tocar numa estrutura sindical notoriamente deturpada pelas regras atuais.
No todo, como questões básicas, dois problemas essenciais precisam ser observados: a autonomia do Banco Central, em mãos continuistas, e a separação estrutural entre o social e o econômico, já denunciada por Dahrendorf, o sociólogo e político alemão contemporâneo.
O carro-chefe do Governo não oferece riscos à relação capital x trabalho. O presidente Lula pode resolver o problema da fome dando três refeições a quem precisa, bastando eliminar as perdas de má administração da cadeia alimentar. E todos estarão dispostos a colaborar nessa missão.
A favor de Lula e da aparente estratégia cuidadosa do PT, estariam os argumentos do próprio Gramsci: “na sociedade ocidental a superestrutura é muito poderosa, os aparelhos de domínio, embora difusos e mediatizados, são muito resistentes”. FHC deixou um terreno minado que não é nada fácil percorrer, e teve oito anos para consolidar suas armadilhas.
Poderia também se valer do 18 Brumário original, onde Marx adverte sobre o problema orgânico das revoluções proletárias, ”que se criticam constantemente a si próprias (....) e escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços....” Mas, como alerta Milton Temer, “o mercado não pode ser driblado por espertezas temporárias”. O Governo precisaria dizer logo onde pretende chegar.

Não se pode cobrar do PT o que nunca prometeu. O que tem pela frente, dentro do próprio modelo capitalista, poderia ser já uma jornada de significativas transformações, ajustando o modelo para uma linha social-democrática, de parceria com a burguesia não-financeira, de maior sintonia com as massas, de maior investimento na educação e na saúde, de reforma agrária nas áreas de pobreza e sobretudo na linha do que Gramsci chamava de necessária “reforma intelectual e moral” do país.
(maio de 2003)