quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Viajar é Preciso?



                                                                  
Turismo é uma atividade à medida para aposentados. Mas meus amigos sabem que não gosto mais de viajar e fazer turismo. Como diretor da OIT eu tive de estudar o fenômeno (naquela época) porque já era grande gerador de empregos de mais fácil acesso, um tema marcante daquela Organização. Olhávamos com interesse e desejávamos seu crescimento ordenado, porque também identificávamos o lado predador do turismo, rompendo tradições e violentando tabus comunitários.
Na atualidade é impossível ignorar a força do turismo. Sem dúvidas o mundo globalizou. Os promotores da globalização, conduzidos pela revolução tecnológica e das comunicações, não tinham de início esse cenário enlouquecido onde tudo que é sólido desmancha no ar. Para o bem ou para o mal a globalização invadiu cada espaço de nossas vidas. Foi um enorme benefício para a expansão do capitalismo, mas também para abrir oportunidades de vida para as novas gerações.
Acabo de fazer uma viagem por alguns países da Europa, uma longa viagem para os padrões e custos com o câmbio atual no Brasil. Não tem como não extrair observações pessoais de várias ordens que passo a narrar sem compromisso com qualquer critério lógico, mas ao acaso e só com as lembranças. Se servir de referência para os colegas e amigos, muito bem, fico gratificado. Ou pode ser apenas uma chance de estimular a lembrança para o que já viveram e conhecem de sobra.
Minha viagem familiar era necessária e inevitável  porque esposa e filho haviam assumido a dupla cidadania, no caso com a Itália. O desejo de estar nesse país por um bom tempo ficou imperativo. A programação teve de privilegiá-lo, mas era a oportunidade para visitar alguns outros de nossa saudosa memória e finalmente sempre haveria Paris. Mas não seria exatamente uma “viagem de turismo”.
O programa acabou se tornando um tanto longo e seria necessariamente muito pesado e cansativo. 40 dias suspensos em hotéis, aviões e trens, com diferentes climas e muitas malas (em consequência disso) representavam também um desafio.
Não preciso reafirmar que o câmbio atual do dólar e do Euro exige aquele expediente de não fazer contas (quem converte não se diverte).
Decididos os países ou cidades  (Roma, Florença, Veneza, Lisboa, Porto e Paris) partimos para montar o projeto. No ano passado encarregamos uma agência, com auxílio de um amigo, e afinal tivemos de cancelar tudo por razões de saúde. Fiquei constrangido de repetir o pedido e decidi fazer por conta própria. Afinal tenho um amigo que viaja muito e faz suas viagens usando pesquisa com instrumentos da internet. Não foi uma boa decisão.
Depois de ouvir comentários sobre as companhias aéreas tradicionais decidi pela KLM que segundo amigos era a que oferecia maior conforto, depois da Emirates e da Lufthansa, bem mais caras. E logo me dei conta que apesar de ter muitas milhas acumuladas, Smiles, multiplus, Livelo, American Airlines, justamente essa variedade não me permitia alcançar níveis suficientes em nenhuma, e todas as dificuldades eram colocadas para articulação entre elas. Tirar uma passagem exige expertise e o uso associado de milhas nem sempre é vantajoso.  Alguns desses programas não têm acesso às melhores ofertas das companhias aéreas. Para a hotelaria optei por Booking que lhe permite trocas sem custo até prazos convenientes para novas escolhas. E preferi hotéis porque gosto de portarias 24 horas e de espaços de estar nas idas e vindas da rua. Depois aprendi que muitos hotéis e apartamentos de aluguel não colocam o hóspede de Booking nas melhores ofertas, porque têm de pagar a essa agência uma taxa elevada. Mesmo sabendo que vão receber avaliação pela hospedagem. Dão preferência a quem reserva diretamente, coisa difícil de se fazer pela internet, que está tomada por essas agências. Vale quando você já tem uma relação anterior com o hotel ou uma indicação de amigos.
Tínhamos as recomendações sobre equipagem, só maletas de bordo, pessoais. Mas uma viagem longa e com informações sobre climas variados nos obrigou ao recurso de malas médias, o que nos elevou os custos e reduziu a mobilidade, tivemos de usar taxis nas chegadas e saídas de aeroportos e estações ferroviárias.
A escolha da KLM nos obrigou a incluir Amsterdam no programa e foi bom por um lado e muito ruim pelo outro. A viagem ficou bem mais longa, cansativa e somou uma cidade com muito frio e chuva. O esforço para estar em Amsterdam foi estenuante. O lado bom é que a cidade é um encanto, alegre, bonita de astral elevado.  Ficamos por lá três dias para descansar da viagem aérea e pelo óbvio prazer que já sabíamos que a cidade proporciona. O Museu Van Gogh era obrigatório mas confesso que não me impressionou. Tudo muito óbvio, até as lembrancinhas de todo museu.  Bom mesmo foi o centro da cidade com seus canais e gente variada de toda parte. E o hotel deve ficar na área do centro da cidade e não na esplanada dos museus.
Saimos do Brasil muito gripados. Estivemos até em dúvida sobre manter a viagem. Com o frio e chuva do primeiro dia em Amsterdam tivemos de recorrer a um atendimento médico. O próprio hotel nos indicou um clínica especializada para turistas. Foi rápido o atendimento, fizeram testes de sangue e determinaram medicamentos específicos para cada caso. Além das receitas, indicaram a farmácia onde devíamos adquirir os remédios. Não era uma caixa fechada, era o número certo de unidades conforme a receita, sem desperdícios. Custo da clínica, 60 Euros  (mais ou menos 300 reais) cada paciente por todo o serviço. E o medicamento, 15 Euros. A gripe cedeu em poucos dias mas a tosse melhorou já no primeiro dia. 
O problema dessas viagens de turismo é que você pode querer ficar mais uns dias no lugar, gostou, mas as dificuldades e impedimentos formais vão te enforcar. Trocar data de passagem pode até ser viável, se pagou por uma passagem flexível, mas vai ter de ajustar o hotel e talvez as demais datas. E pode, como aconteceu, que seu próprio hotel não tenha data para você ficar mais um dia.
Nos lugares que programamos, todos muito turísticos, as datas estavam sempre esgotadas, não havia opção para trocas, as cidades estavam cheias dia e noite.  Acho que o terceiro mundo segue bancando seus antigos patrões, e as taxas de câmbio ajudam essa engrenagem poderosamente.
A Europa que eu vi, nas cidades escolhidas, está lotada dia e noite, multidões de turistas circulando a toda hora, os aeroportos parecem mais rodoviárias, funcionam automaticamente, sem espaços para improvisações, estão cada vez mais imensos, até mesmo o do Galeão, no qual ao desembarcar tivemos de caminhar, inclusive com ajuda de esteiras rolantes, por quase um quilômetro, depois de uma viagem de onze horas. Na passagem pela segurança dos aeroportos tínhamos de mostrar toda nossa carga e tirar até o cinto. Tudo bem, está assim em toda parte, mas os fiscais pressionam para se fazer tudo às pressas, reviram o conteúdo das maletas e misturam a ordem dos passageiros, ou seja, criam um tumulto estressante. Não sei se intencional, mas foi ali que desapareceu uma lente muito cara da filmadora do meu filho, o que só nos demos conta no hotel em Lisboa. Acho muito suspeita a conduta naquela passagem fiscal. Como você embarca, não tem como fazer queixa ou provar nada. Como é uma prática generalizada, precisa-se de muita atenção nessa hora.                                                                                                                                                                
Mas estávamos na Toscana e isso não tem preço. Desde os filmes românticos sobre descobertas do amor e vinhedos alquimistas, Toscana tem a mística da felicidade. Era então programar a exploração de Florença e do entorno. O ideal do que fizemos no passado transitava na cabeça de minha esposa e era “alugar um carro e sair por aí”.  Mas já nos pesavam os esforços de viagem e decidimos começar alugando uma excursão tradicional. Fomos a Siena e San Gimignano. Siena com catedrais lendárias e a praça medieval de piso helicoidal único. Uma experiência mágica. E San Gimignano uma entrada pelo medieval adentro.   Incríveis emoções. Mas tudo com muita subida e o desgaste físico enorme porque os ônibus de excursão não eram confortáveis e nos deixavam distantes dos eventos. Caminhadas longas e muita subida foi demais. Abandonamos a ideia de excursão tradicional. Teria de ser de trem por conta própria ou aluguel de carro. 
Mas a própria Florença já era infinita. Caminhar pelo centro histórico e admirar as edificações, os monumentos e esculturas, um presente para a vista, era penetrar na história. Isso fizemos religiosamente por muitos dias, muitas vezes sentando num dos cercadinhos que predominam em quase todo o espaço do centro. Aliás, nessas cidades europeias históricas e turísticas os restaurantes tomaram as ruas, não estão dentro de prédios. São pequenos “currais” no canto ou no centro das ruas. Em alguns casos isso possibilitava se alimentar admirando a beleza do cenário, mas mesmo em vielas sem vista direta das atrações, a regra era ocupar as ruas.
As duas grandes atrações, como se sabe, são o Majestoso Duomo, a gigantesca catedral, e a estátua do David, de Michelangelo. Para as duas atrações, mesmo com passe especial,  as filas são imensas e o tempo de espera impraticável para os mais idosos. O David, que ficava à vista na frente da catedral agora está protegido dentro da Galeria De La Accademia e com isso cobra ingresso e rende também uma fábula. A monetarização do turismo é notória e tudo tem algum custo, mesmo pequeno. Na soma faz diferença.  Não alugamos um carro para prosseguir com as explorações da região, estávamos cansados e preferimos ficar pela cidade de Florença.
De Florença fomos de trem rápido por dois dias a Veneza, uma volta depois de muitos anos e a mesma emoção inenarrável, nada igual existe. Veneza como sempre fervilhava de turistas. A Piazza San Marco, grandiosa mas sem atrações além da catedral e a torre destoante.  Com toda aquela gente, ainda sobrava muito espaço vazio. Impossível não se sentir que se está num realismo fantástico.  
O único trecho com empresas regionais foi a ida de Florença para Lisboa, uma boa distância, cerca de três horas de voo. Mais uma vez, na passagem pela segurança do aeroporto tínhamos de mostrar toda nossa carga e tirar até o cinto. Tudo bem, está assim em todos os aeroportos, mas os fiscais pressionam para se fazer tudo às pressas, reviram o conteúdo das maletas e misturam a ordem dos passageiros, ou seja, criam um tumulto estressante. Não sei se intencional, mas foi ali que desapareceu um objeto nosso de valor, o que só nos demos conta no hotel em Lisboa. Acho muito inadequada a conduta naquela passagem fiscal. Como você embarca, não tem como fazer queixa ou provar nada.  Uma perda considerável. Como é uma prática generalizada, se precisa de muita atenção nessa hora.                                                                                                                                                          Na Itália todos os filmes eram dublados e as televisões praticavam exclusivamente o italiano. Foi difícil passar os 15 dias, mas justo para desafiar a cidadania familiar.
Enquanto as expectativas na Itália eram ligadas à assunção de identidade e busca de informações sobre o envolvimento cinematográfico, em Portugal eram as perspectivas de encontrar uma oportunidade de investimento imobiliário. E as dificuldades com o italiano seriam compensadas.
Em Lisboa nos hospedamos na Garret, uma pequena rua no coração da cidade, no Chiado, onde havia movimento dia e noite, artistas de rua e manifestações políticas. E onde se cultua a estátua de Fernando Pessoa sentado e contemplativo. As pessoas dialogam com ele e tiram fotos. Pessoa parece ter vida.
Mas as buscas de ofertas imobiliárias nos levou com muita frequência, a tomar o comboio na direção de Cascais, ou seja, idas e vindas a Oeiras, Belém, Estoril... Há, desde alguns anos, uma corrida imobiliária intensa na linha dessas comunidades.  Os preços, naturalmente, aumentaram muito e as melhores ofertas foram já aproveitadas. E para nós brasileiros tem ainda o obstáculo do câmbio desfavorável no momento. Mas a corrida da oportunidade de trabalho e investimento persiste ativamente.  Não apenas Lisboa mas também na área do Porto.
A belíssima arquitetura da cidade nos soa familiar, mas nos supera pela quantidade, que nos enche os olhos para toda parte que se olhe.  Lisboa é uma linda cidade, apesar do sobe e desce, que exige boa forma física. Pelo número de igrejas se ouve o sino tocar com muita frequência e não apenas às seis horas da Ave Maria. Portugal ainda vive uma fase de euforia econômica com grande crescimento do turismo e os serviços derivados.
Finalmente Paris.  Foram sete dias de puro prazer.  O sítio dos estudantes foi até divertido e durou uns dias mais. Eles estavam protestando em defesa do planeta, mas em nenhum momento ou nenhum cartaz se falava da Amazônia. Como toda coisa de jovem, muita música, dança, criatividade. Nenhum sinal de violência. Mas nos obrigava a dar voltas para chegar a San Michel, uma referência antiga para nós em Paris. Paris é uma festa, já se disse. E é pura verdade. De noite em San Germain e San Michel tem fila para conseguir sentar-se em uma mesa externa, porque todos querem estar na calçada dos restôs e o alimento é ver outras pessoas e jogar muita conversa fora. Se a gente for analisar friamente, não tem nada acontecendo, só muita gente reunida no mesmo lugar, dando uma impressão de festa. E a comida, mesmo os pratos mais simples, tem sempre um gostinho especial exclusivo.
A volta ao Rio teve o sabor de quem ficou muito tempo afastado de sua rotina de simples prazeres , mas deu para sentir a diferença na qualidade de vida, quando se examina a segurança, o sabor das comidas, a conservação das ruas e o ruído (exceto as polícias, bombeiros e ambulâncias da Europa, que fazem um ruído espantoso).
Viajar é preciso?     
(Vale explorar o sentido dúbio de ser preciso que não sei se estava explícito na citação do poeta Pessoa)