sábado, 18 de abril de 2020

De Como Aprendi a Amar o Vírus


             por JCA

Já muito se tem falado sobre o novo vírus que se desprendeu da China e inunda o mundo de forma inesperada, embora previsível. Agora que o fato se instala, vemos em diferentes fontes que não faltaram advertências sobre essa possibilidade.
Fato: missão americana para fiscalizar encomenda feita pelos Estados Unidos a um laboratório na China, não sabemos com que proposito, constatou que havia falhas de segurança e recomendou medidas corretivas. Nada foi feito de ambas as partes.
Essa mania chinesa e de outros povos orientais de pesquisar e até se alimentar de bichos estranhos a nossa cultura tem sido visto com curiosidade, mas sem seriedade. Não é a primeira epidemia brotada dessa prática. E parece que não será a última.
A guerrinha entre as duas potências mundiais não teria importância não fossem as repercussões para o resto do planeta. O egocentrismo de ambas é inaceitável, mas não podemos fazer nada a respeito.  As grosseiras falhas e vícios do capitalismo de livre mercado levaram por concorrência desleal e oportunismo empresarial a essa distorção absurda de concentrar a riqueza comercial nas mãos da China.  O preço que estamos todos pagando neste momento é infernal, com enorme custo de vidas em todas as partes.  A responsabilidade da China pelo desastre é inquestionável, mas a quantidade de acumpliciamentos deixa um rastro profundo no resto do mundo.
Infelizmente a culpa tem sido jogada na democracia e nas liberdades democráticas, inclusive nas formas políticas de representação. Acusação infundada, claro, o mal não está no sistema, que não tem substitutos melhores, mas na vigência de dois vícios poderosos: os economistas liberais e neoliberais, e a vida política das nações, ocupada por estamentos familiares e cultura destorcida do conceito da coisa pública.  A sociedade democrática é por definição uma instituição frágil, que depende de consensos difíceis de lograr, o que abre espaços para oportunismos autoritários e viciosos.  Mas não existe um sistema melhor no mercado do desenvolvimento humano e do processo civilizatório.
Na verdade, a democracia foi violentada pela globalização desenfreada e mal interpretada que abriu mercados para os mais poderosos que dividiram o mundo a seus interesses distribuindo funções secundárias para países fornecedores de matérias primas e importadores de produtos industrializados. Em nome dessa globalização imposta de cima para baixo, países menos fortes politicamente se voltaram para explorar e destruir seus bens naturais de valor econômico episódico e abdicaram de economias substantivas, robustas e sustentáveis, que poderiam gerar empregos saudáveis e uma vida humana mais confortável e qualificada e se tornaram subsidiários do mundo globalizado  a sua revelia. A riqueza produzida por esse modelo foi concentrada em meia dúzia de nações e numa classe de empresas multinacionais, donas das transformações científicas e tecnológicas. O que as novas tecnologias puderam gerar em riquezas foi concentrado como nunca antes nas mãos de entidades institucionais superpoderosas, acima dos países e das organizações internacionais coletivas.
Com objetivos puramente explorativos, dominadores e imediatistas, essas entidades sabotaram quaisquer esforços dirigidos à conservação do planeta Terra.  E criaram uma ideologia à sua feição que faz do individualismo e do livre arbítrio recursos espertos de argumentação distorcida dos próprios conceitos. Como em toda ideologia os prejudicados são seduzidos por astutas armações que fazem parecer seus interesses coincidentes com os verdadeiros interesses das entidades poderosas, quando devia ser o contrário.
A China se aproveitou das crenças equivocadas na liberdade de comércio e de transações e entrou de sola no mercado mundial violentando todas as regras de direitos trabalhistas e concorrência internacional. Usou seu momento histórico de inauguração de novo modelo político rompido com o maoísmo e voltado para as oportunidades de crescimento internacional, considerando suas dimensões continentais e sua cultura acostumada à obediência ancestral.  Os organismos internacionais foram apanhados de surpresa e não souberam como reagir às violações de regras recém forjadas na implantação de sua novidade encantada do neoliberalismo. Como podiam condenar a China se defendiam a liberdade total de mercado? Os limites disso estavam e ainda estão indefinidos. No começo os produtos chineses eram mal vistos e por isso tolerados, mas aos poucos foram convencendo aos consumidores menos exigentes e de menor poder de compra. Logo foram subindo de patamar e hoje são dominantes em todos os sentidos. Mesmo Trump cedo se deu conta que seu país estava nas mãos da China e suas empresas e empregos haviam migrado para o oriente. Não estavam perdendo apenas no sentido econômico, mas na soberania.
Se assim estão os Estados Unidos, que diremos do resto do mundo?  A concorrência desleal, obtida pelos baixos custos de produção, onde os baixos salários e as reduzidas condições de trabalho contavam, forçou países que tinham economias equilibradas e podiam pagar bons salários e manter sistemas de saúde e previdência qualificados, a começar a desmontar suas instituições sociais e o bom trato da coisa pública. Sobretudo entre os países europeus, que eram exemplos de boa administração e sistemas sociais civilizados.
O mundo capitalista, concentrador de riquezas e explorador do trabalho se alegrou com as primeiras experiências de embarcar justificadamente na redução de benefícios de seus trabalhadores, mas logo se viram numa condição subalterna insustentável porque o modelo de exploração e geração de renda estava fazendo água.  Foi o que estávamos enfrentando como crise econômica e financeira até há pouco tempo.
Não preciso replicar como um surto, mal entendido, foi se transformando numa epidemia e logo nessa onda apocalíptica que está arrasando o lado de cá, o lado estritamente capitalista do mundo.
O vírus em si é uma pérola, tem uma falsa debilidade, envolto numa frágil esfera de gordurinha, indefeso, modesto. Mas se colocado frente a nossas defesas já gastas pela idade ou pelos maus costumes e má distribuição de renda, se deixa penetrar pelas células de nosso corpo e nesse ambiente se fortalece e se multiplica de forma voraz.
Ele é perfeito porque é dificilmente identificado e visível, não tem  um tempo certo de vida, se agarra a qualquer superfície, pode ficar um tempo no ar depois de um espirro ou mesmo uma respiração mais forte, não apresenta sintomas nos primeiros dias mas já é contagioso, o que obriga a um esforço notável de prevenção, um gasto de energia às cegas, e se mostra com um poder letal avassalador. Ele é superior a seus coleguinhas já habituais em nosso convívio desnaturado.
Ele é fortemente darwiniano, atinge mais os menos aventurados, de saúde precária ou de desgaste físico pelo tempo de vida. Um sacana de merda que permite a proteção dos mais ricos e mais bem alimentados.
E por ser perfeito em suas intenções e destinações, ele não pode ser um produto da natureza. Apesar da lenda de perfeição, a natureza é imperfeita, ela se deixa tocar decisivamente pelo ser humano, ela depende de condições atmosféricas e ambientais e seus elementos estão sempre em conflito, morrendo e renascendo. Só em laboratório se pode criar um objeto com tamanha competência. A corrente científica tem atestado que não parece criação de laboratório, mas não tem certezas e não quer depreciar o trabalho de pesquisa, que, é verdade, faz mais bem do que mal à humanidade.
Estamos todos ou quase todos de quarentena, mas cada quarentena é uma quarentena. Muitos estão em suas ilhas paradisíacas, nos seus sítios e fazendas esperando a praga passar. Muitos contam com recursos técnicos e médicos de qualidade à disposição para se acaso, Muitos outros estão amontoados em pequenos ambientes mal preparados e mal cuidados. Muitos estão obrigados a trabalhar por dever de ofício ou ameaça de dispensa. Há todo tipo de quarentena ou meia quarentena. Não por culpa do vírus, mas dos que se descuidaram dele na China. E de nossos governantes de todos os tempos que nunca ofereceram à população uma qualidade de vida sustentável.
Propor critérios de escolha de quem vai morrer quando os recursos técnicos são limitados tem mostrado a ideologia corrente, mesmo entre os médicos que juraram perante Hipócrates defender a vida. Eu não vejo outro critério senão a ordem de chegada. A não ser em última instância quando a medicina já sabe que não tem saída e apenas pode fazer o que costuma fazer nos hospitais particulares, ficar ganhando tempo e dinheiro. Fora disto deve valer a precedência. No caso brasileiro, onde a igreja impediu políticas saudáveis de conscientização, proliferam os jovens sem amparo familiar e jogados à falta de oportunidades de trabalho, que vão custar muito mais caro à sociedade nos critérios frios da economia, enquanto os idosos estão cobrando o que pagaram em impostos e contribuições  durante uma vida, do tempo que havia emprego  e sistema de previdência razoavelmente financiados.  Não pode haver escolha da inspiração darwiniana.
Nem vou discutir a necessidade, por falta de recursos técnicos, do distanciamento social e do isolamento, tão desumanos, mas sem alternativas, exceto para super-homens como o capitão presidente (que por dever moral de seu cargo público, tinha de divulgar o resultado de seu teste, embora certamente fosse gerar mais discussões sobre a credibilidade do resultado).
Quanto ao futuro, existe um amplo leque de crenças e expectativas, mas tudo depende de nossa visão mais otimista ou pessimista do que pode o ser humano.
Por fim eu penso em quem vai me devolver o outono carioca, a época mais linda da cidade, com seu clima ameno, suas festas juninas, suas praias menos cheias, seu por de sol confortado, sua música contagiante, suas tribos, sua diversidade, sua alegria?


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